1 de jul. de 2019

mouras encantadas

Ladeira de Mação
Um dos dos testemunhos da influência muçulmana sobre a nossa cultura é a quantidade e a elaboração de narrativas relacionadas com mouras encantadas que se contam entre as mais belas do imaginário português. São histórias que remontam, geralmente, ao período da reconquista cristã, quando se contava que, em certos locais mais recônditos, os velhos patriarcas muçulmanos em desespero haviam encantado as filhas. Dizia-se que na origem de tais encantamentos estava a irreversível aproximação dos exércitos cristãos, como aconteceu às infelizes filhas do governador do Castelo de Loulé ou à moura de Salir. Esta última foi deixada para trás por seu pai, o alcaide de Castelar, perante a aproximação do exército de D. Afonso III. Quando os cristãos entraram no castelo, encontram-no abandonado, à excepção da moura, que rezava com fervor. Quando interpelada pelo cavaleiro D. Gonçalo, terá dito que tinha preferido ficar a "salir". Enquanto isto, o alcaide, do alto de um monte vizinho, traça no ar o símbolo de Salomão e profere um encantamento, transformando a filha numa estátua de pedra. A notícia do encantamento espalha-se e um dia a estátua desaparece. Outra das causas seria uma eventual paixão por um português (como a moura Aldonça, segundo a lenda, transformada em fonte por causa dos seus amores com o cristão Atanásio, que por seu turno terá sido transformado em serpente; ou como a filha do governador de Faro, apaixonada por um guerreiro), ou o simples auxilio a quem não partilhava do credo islâmico.
Moura Pena Furada, Coirós, Corunha
Era de comum conhecimento entre o povo do Alentejo e do Algarve que estas mouras encantadas apareciam aos cristãos nas noites de S.João, numa tentativa vã de que estes as desencantassem e as devolvessem a uma vida normal. Para premiar este serviço, as mouras dispunham de magníficos tesouros, assim sucedendo em algumas lendas, como a casa de Zaida (Avis), da tesourinha da Moura (junto a Mértola), da moura Basília (Rego de Vide), ou a lenda do encantamento de Estói - certo dia, o almocreve José Coimbra, ao passar perto das ruínas de Milreu, perto de Estói, encontra uma bela moura encantada, que trajava um manto de princesa. Fascinado, ele segue-a e tento ambos chegado a determinado local, a moura bate com o pé três vezes no chão, abrindo-se um alçapão na sua frente. Descem de seguida por uma escadaria de mármore até uma sala enorme, revestida a ouro. A moura deixa-o por um instante e volta com um leão e uma serpente, seus irmãos encantados. Prometeu então a José todo o seu ouro se este os desencantasse, tendo, para tal, que ser engolido e regurgitado três vezes pelo leão e mordido três vezes pela serpente.
O seu corpo em chagas seria curado com beijos na fronte pela princesa e libertado dos óleos do baptismo. O almocreve, assustado, pede-lhe para pensar e a moura deixa-o ir embora, oferecendo-lhe 2 barras de ouro. Este retorna a casa e tenta esquecer o sucedido. Passado pouco tempo, começa a ter pesadelos e vê-se a empobrecer cada vez mais, decidindo vender as barras de ouro. Mas quando as vai recuperar e olha para elas, fica cego. Decide então viajar para Faro a fim de visitar um especialista. Ao passarem por Estói, aparece-lhe a moura, que o acusa de ter faltado à promessa de lhe dar uma resposta. José chora, arrependido, e a moura, comovida, devolve-lhe a visão. 
As mouras do imaginário, quase sempre de origem algarvia ou alentejana, ora são santas a quem falta o baptismo, ora malvadas como almas sem redenção. As primeiras têm a beleza do mel, as segundas a beleza das sereias. As primeiras premeiam o guerreiro, as segundas deitam-no a perder. Outras vingam-se de quem são souber guardar os seus segredos ou de quem, por curiosidade, lhes comprometesse o desencantamento. Noutra história (a da moura Cássima), é a mulher do desencantador a origem da desgraça, quando decide espreitar uma arca que o marido deixara no sótão, condenando, sem o saber, essa moura a vaguear no limbo entre a vida e a morte. Cássima oferece então um cinto de ouro e pedrarias ao carpinteiro e este, para ver melhor o cinto, coloca-o à volta de uma árvore, cortando-a instantaneamente. Se a curiosa mulher deste o tivesse usado, custar-lhe-ia muito caro.
Giraldo Geraldes, o Sem Pavor
Algumas amavam com a intensidade e a melancolia de que poucas cristãs foram capazes. Assim sucedeu com a  mourinha Altamira, esquecida pelos mouros em debandada quando D. Afonso II conquistou Alcácer do Sal. Criada como cristã no castelo local, quiseram os seus dotes naturais que se tornasse poetisa, música e o encanto dos olhos de quantos cavaleiros passassem pela região. Apaixonou-se de tal forma por um D. Gonçalo que, reza a lenda, os suspiros dos dois amantes ainda não abandonaram completamente as velhas paredes da vila alentejana. Menos feliz foi a bela cortesã que em Évora se perdeu de amores por Giraldo Geraldes, o Sem Pavor. Tocando alaúde sob a janela do quarto da menina, Giraldo apoderou-se do seu coração. Mas não era o virginal amor da jovem o prémio por ele pretendido. Mal se viu nos seus aposentos, não teve o impulso de lhe procurar os lábios, sacando em vez disso da sua adaga e cortando-lhe a cabeça. Este era um meio como qualquer outro de entrar no castelo e o reconquistar para maior glória de D. Afonso Henriques.
Hermann Fenner-Behmer - Reclining Odalisque
As mouras são igualmente protagonistas de histórias de amor e morte, que nem sempre se encontram relacionadas com as tradicionais fábulas de encantamento, embora datem da mesma época. Uma delas conta o triste caso de Salúquia, alcaidessa de Arruci-a-Nova. Na véspera de se celebrar o seu casamento com o homem que amava, o príncipe Brafma, Salúquia sentiu-se assaltada de um negro pressentimento que nem as suas escravas compreendiam. No percurso que o haveria de trazer junto da noiva, Brafma foi assassinado por uma pequena hoste cristã, tendo posteriormente os seus assassinos se dirigido a Arucci-a-Nova, onde entraram, disfarçados com as vestes dos mouros que haviam massacrado. Salúquia não suportou o desgosto: segurando a chave do castelo nas suas mãos, atirou-se do alto de uma torre, convicta que no paraíso de Alá se tornaria esposa de Brafma. Aos olhos dos cristãos, as mulheres mouras seriam mesmo assim, capazes dos maiores sacrifícios por amor e saudade de um homem. Estar-lhes-ia no sangue, como faz crer um velho mito português que atribui aos mouros uma particular disposição para os males de amor.
Estas lendas, passadas de geração em geração, ao longo de séculos, são o melhor argumento que se poderá opor à ideia de que os muçulmanos foram invasores que passaram, sem consequências, pelo território português.


fontes: Mulheres Portuguesas, Maria João Martins, Vega
            Wikipedia
            Infopedia