14 de jun. de 2019

Ofélia Queirós (nascida a 14 de junho, Pessoa a 13 de junho)

Fernando Pessoa não se perdeu de amores por uma dama singular, mas por uma menina de 19 anos que, num belo dia de primavera, procurou emprego na Félix, Valadas & Freitas, Lda., empresa na qual o poeta prestava serviços a um primo. A jovem Ofélia era uma dessas jovens que, na década de 20, descobriu o desafio da emancipação. Não que tivesse fumado longas cigarrilhas ou passado noites brancas e frenéticas no Maxim's; mas, como filha mais nova de uma família de 8 irmãos, não se deixou ficar à sombra dos mimos habituais nestes casos. Fez o 5º ano singular de Francês, falava correctamente este idioma, escrevia em todos os teclados e, chegada à idade de 19 anos, resolveu  rentabilizar estes conhecimentos num emprego que lhe valia a bela soma - estávamos em 1920 - de 18$. Já não era, pois, um ornamento de salão de chá como as mulheres da geração da sua mãe, mas continuava a não ter qualquer preparação prática para a vida de casada, ou seja, nada sabia sobre sexualidade, gravidez, parto ou educação dos filhos. Leria, talvez, a Voga, a revista feminina mais "in" da época, mas talvez não desprezasse os conselhos mais prosaicos incluídos no Guia Mundano das Meninas Casadoiras. As vamps, e mulheres fatais eram uma fantasia de ecrã, enquanto que o casamento se afigurava o horizonte mais próximo.
Não estaria pois em equilíbrio intelectual com o amado. As cartas de Fernando revelam-nos uma Ofélia irritantemente confundida pela introdução de Álvaro de Campos na conversa oral e escrita, pelo que ele não terá sequer mencionado Ricardo Reis, Alberto Caeiro ou Bernardo Soares. O seu objectivo, como o de todas as raparigas dos anos 20, seria o casamento. Pessoa mostrava-se reticente, dizendo, numa carta de 1920: "Quando me dizes que o que mais desejas é que eu case contigo, é pena que não me expliques que tenho ao mesmo tempo que casar com a tua irmã, teu cunhado, teu sobrinho e não sei quantas freguesas da tua irmã." Aliás, este é o mesmo autor que, através de Álvaro de Campos em Lisboa Revisited, escrevia em 1923: "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disso, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa fazia-lhes a vontade."
As cartas de amor do poeta são a única fonte que nos permite evocar a figura de Ofélia, embora saibamos que um apaixonado vê a vida elevada ao cubo, sendo por isso uma péssima testemunha... Em todo o caso, ela surge-nos alegre, encantadora de maneiras e insinuante (Pessoa ousa chamar-lhe "corpinho de tentação"), determinada, mas também bastante vulnerável a intrigas e, sobretudo, aos conselhos de sua irmã mais velha que não se mostravam muito favoráveis ao apaixonado.
O seu namoro era clandestino. Por qualquer motivo, ele não queria publicitar os seus amores nem que lhe chamasse "namoro", tendo dito certa vez: "Não digas a ninguém que nos namoramos, é ridículo. Amamo-nos." A própria família do poeta não teve conhecimento da ligação, senão depois de sua morte, quando foram descobertas as cartas e postais enviados por Ofélia. Na família dela, a confidência parece ter sido confinada somente à tal irmã, já que o seu pai aparentemente não parecia ser para graças. A primeira fase da relação, vivida durante o ano de 1920, teve, apesar disso, todas as características dos namoros antigos: alimentando-se de bilhetinhos, olhares, troca de presentes carinhosos, trajectos de carro eléctrico à saída do emprego dela e encontros após a missa de domingo, na Igreja da Conceição Velha. Sempre dentro do respeito que a época e os costumes impunham aos namorados, Fernando dava conta a Ofélia da angústia que o tomava sempre que não a via, dos ciumes e intrigas que cada um deles inventava ao outro em sinal do desassossego característico dos apaixonados. No entanto, no outono, ambos estavam já num beco sem saída. Uma carta dele, em 29 de novembro, porá termo a esse namoro a que ele preferia dar o simples nome de amor: "Se a vida que é tudo passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?". A relação foi retomada 9 anos depois, a propósito de uma fotografia de Pessoa (uma das suas mais famosas, em que surge no Abel Pereira da Fonseca em flagrante "delitro"), por ele oferecida a Carlos Queirós, sobrinho de Ofélia.
Tomada de súbita saudade, ela quis uma também para si, e como mulher determinada que era, não hesitou em pedi-la e em restabelecer o vínculo julgado perdido. Ela tinha 28 anos e Fernando 40. Ela, apesar de ter tomado a iniciativa de retomar a relação (o que era considerado uma ousadia para uma mulher dessa época), notava-o diferente: obeso e pouco disponível para o amor, de tal modo estava absorvido pela sua obra literária. O casamento repugnava-lhe mais do que nunca, dizendo mesmo à namorada: "Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho de escrever, e é uma maçada porque depois a Bebé não pode dormir descansada." Numa carta de 29 de setembro, chega mesmo a confessar-lhe: "Se me casar, não será senão consigo. Resta saber se o casamento, o lar (ou como se lhe quiser chamar) são coisas adequadas à minha vida e ao meu pensamento. Tenho dúvidas." Após a ruptura definitiva, continuaram ainda a trocar telegramas nos respectivos aniversários (o dele a 13 de junho e o dela a 14 de junho, ambos do signo Gémeos), até à morte de Pessoa. As cartas de amor de Fernando Pessoa foram comentadas pela primeira vez, por João Gaspar Simões, e mais tarde por Carlos Queirós, sobrinho de Ofélia, grande amigo do poeta. Queirós publicou 13 destas num texto intitulado " Carta à Memória de Fernando Pessoa", onde dizia: " As suas cartas de amor! Porque você amou, Fernando, deixe-me dizê-lo a toda a gente. Amou e, o que é extraordinário, como se não fosse Poeta."


fonte: Mulheres Portuguesas, Maria João Martins, Vega