17 de nov. de 2019

Eugénio de Andrade - Na Orla do Mar (Schubert - Piano Trio No.2)





Na Orla do Mar

Na orla do mar,
no rumor do vento,
onde esteve a linha
pura do teu rosto
ou só pensamento
(e mora, secreto,
intenso, solar,
todo o meu desejo)
aí vou colher
a rosa e a palma.
Onde a pedra é flor, 
onde o corpo é alma.



Árvore, árvore. Um dia serei árvore.
Com a maternal cumplicicade do verão.
Que pombos torcazes 
anunciam.

Um dia abandonarei as mãos
ao barro ainda quente do silêncio,
subirei pelo céu,
às árvores são consentidas coisas assim.

Habitarei então o olhar nu,
fatigado do corpo, esse deserto
repetido nas águas, 
enquanto a bruma é sobre as folhas

que pousa as mãos molhadas.
E o lume.



Ignoro o que seja a flor da água
mas conheço o seu aroma:
depois das primeiras chuvas
sobe ao terraço,

entra nu pela varanda,
o corpo inda molhado
procura o nosso corpo e começa a tremer:
então é como se na boca

um resto de imortalidade
nos fosse dado a beber,
e toda a música da terra,
toda a música do céu fosse nossa,

até ao fim do mundo,
até amanhecer.



Alex Stoddard