8 de ago. de 2019

histórias que as nossas avós contavam


A Sopa de Pedra

Especialidade de Almeirim, a lenda enquadra-se num frade que tinha tanto de esfomeado - e não como de comilão, como se diz - como de imaginativo. Andava o frade no seu peditório e foi bater ao portão dum lavrador, onde esperava matar a fome. Porém, o lavrador era demasiado avarento e nada lhe quis dar. Não perdendo a bonomia, o frade disse:
- Bem, entâo vou ver se faço um caldinho de pedra...
Dito isto, baixou-se, pegou numa pedra, deitou-a fora, depois noutra, até que encontrou uma que pareceu agradar-lhe. O lavrador e a mulher, que entretanto acudira, observavam-no com atenção. No início, o casal riu-se, mas o frade encarou-os e perguntou:
- Nunca comeram caldo de pedra, pois não? É um petisco de truz!
Curiosos, os lavradores dispuseram-se a apreciar. Então, ele pediu-lhes emprestada uma panela de barro, que encheu de água e nela meteu a pedra bem lavada. 
- Se me deixassem pôr isto a cozer aí à lareira...
E quando a panela começou a chiar, o frade comentou:
- Com um pedacinho de unto, ficava um primor!
Veio o unto. Depois pediu sal para matar o ensosso.
- Com um nadinha de chouriço é que isto ganhava graça!
Depois pediu feijão encarnado, umas batatinhas, e tudo ia para a panela, donde saía um cheiro de aguçar o apetite a um morto. Os lavradores, aparvalhados, apreciavam o cozinhado e o frade lambia os beiços.
- E ficará bom? - perguntava o lavrador.
- Não se nota só pelo cheiro? - respondia o frade. 
A mulher do lavrador anotava tudo num papel, que não conhecia a receita. O frade tirou a panela do lume e serviu-se numa malga, que também lhe emprestaram. Em três malgas bem saboreadas, o espertalhão despejou a panela. O lavrador e a mulher foram espreitar e viram a pedra no fundo. 
- E a pedra, ó fradinho?
- A pedra... lavo-a e vai no alforge para servir outra vez...

receita para 8 a 10 pessoas:

1 litro de feijão encarnado
1 orelha de porco
1 chouriço de sangue e outro de carne
150 g de toucinho entremeado
750 g de batatas
2 cebolas
2 dentes de alho
1 folha de louro
coentros, sal e pimenta

Demolhar o feijão umas horas, se for duro. Escaldar, rapar a orelha e cozê-la com o resto dos ingredientes em muita água. Se for preciso, acrescentar água a ferver. Quando a carne cozer, retirar e meter na panela as batatas aos cubinhos e os coentros picados. Ao retirar a panela do lume, juntar-se-lhe a carne aos cubinhos e uma pedra bem lavada, que também deve ir na terrina de servir.



A Bicha das Sete Cabeças

Em Silvade, nas imediações de Espinho, há um velho painel de 24 azulejos com a imagem de uma serpente de sete cabeças. Corresponde à lenda de um monstro que um dia apareceu ali perto, na Ribeira junto a uma antiga ponte romana, hoje completamente transformada. Diz a lenda que uma mulher estava a trabalhar na sua horta quando viu uma serpente com muitas cabeças lançar-se na sua direcção. Nem pensou duas vezes, deitou logo a fugir, gritando a plenos pulmões. Os vizinhos perceberam logo o que se passava e fugiram todos. Porém, à noite, já dormiam todos quando ouviram um grande alarido. Com o medo, não saíram logo, mas no dia seguinte, logo pela manhã, viram o que o monstro lhes fizera aos animais de criação. Despedaçados, mortos, comidos, agonizantes. E decidiram defender-se. Assim, na noite seguinte, um deles ficou de sentinela com uma corneta. E dormiram sem problemas até ao raiar da aurora, quando foram acordados pelo toque da corneta. Armados de paus e enchadas, saíram, mas já fugira o bicho. Contou-lhes o sentinela que lhe aparecera a serpente e que lhe dera com uma enchada e ela fugira para as matas, arrasando tudo no seu caminho. Furiosa com os estragos, a população andou dias e dias em busca do monstro, que só voltou a aparecer numa tarde chuvosa e cinzenta. Era de tal modo medonha que houve uns que fugiram, enquanto outros a atacaram furiosamente. Julgavam-na por fim morta, quando um camponês se chegou a ela para verificar. Ela matou-o logo. Então os outros deram-lhe outra carga de golpes e cortaram-lhes as cabeças, que eram sete. Depois enterraram o monstro junto a um pilar da antiga ponte romana e ali levantaram uma capelinha para comemorar a luta. Porém, uma cheia da Ribeira deitou abaixo a capelinha e o azulejo que ali estava passou para a povoação, onde existe agora o Largo da Bicha das Sete Cabeças.



As Bruxas e o S. João


Michael Berube, Depths
Esta lenda tem lugar na freguesia de Castelo de Penalva. Certa vez, duas mulheres amigas, nascidas e moradoras neste local, andavam por um caminho que as levava ao rio. Ao passarem em determinada propriedade, viram duas outras mulheres que as surpreenderam. E atemorizaram também - pois eram mesmo mulheres da cintura para cima, mas serpentes da cintura para baixo! Ao verem as duas amigas do Castelo pelo caminho, uma das mulheres-serpentes acenou-lhes e pediu-lhes:
- Catem-nos! Catem-nos, por favor! - e perante a hesitação das outras duas, paralisadas e de olhos muito abertos, insistiu - Se nos catarem, dar-vos-emos coisas lindas!
Uma das mulheres ficou que nem se podia mexer, mas a outra, mais afoita, dirigiu-se às mulheres-serpente e catou-as bem catadas. Acabado o serviço, disse à que catara uma das mulheres-serpente:
- Estende-me o teu avental...
Ela assim fez e nele recebeu uma porção de carvões. As mulheres entreolharam-se, surpreendidas, mas guardaram os carvões e lá se meteram de novo pelo caminho à face do rio. Porém, antes de entrarem na povoação, pensaram que se poderiam rir delas por andarem com carvões no avental, e decidiram deitar fora o que levavam. Repararam que, afinal, aquilo pesava mais naquele instante do que quando os receberam. E ao abrirem o avental viram que os carvões se tinham transformado em moedas de ouro!



O Sapateiro Bandarra


Por trovas proféticas, o sapateiro de Trancoso, Gonçalo Anes, Bandarra por alcunha, alcançou fama nacional. Ao ponto da Inquisição se interessar por ele e pela sua obra e o ter proibido de erguer os olhos acima do trabalho de que era oficial consumado. E a sua fama chegou aos nossos dias, continuando a sua biografia a emocionar as gentes. Fica aqui uma das suas profecias, assim como uma profecia respeitante à sua filha, Maria de seu nome.
Em mil, quinhentos e tal, um almocreve, aproveitando pernoitar em Trancoso como etapa demorada do seu recado, foi ao Bandarra entregar um serviço. As suas botas de andarilho estavam num estado miserável e haviam-lhe dito que aquele sapateiro era o melhor das redondezas. E teria de esperar por perto, pois não tinha outro calçado. Pois ali, à vista do almocreve, o Bandarra transformou-lhe as velhas botas numas quase novas, as quais lhe davam uma tranquilidade ao andar, sobre os facto de estarem à largura e ao jeito do pé do dono. E o almocreve, quando estendeu a mão para as receber nem queria acreditar naquela maravilha. E perguntou quanto devia pelo serviço. Resposta do sapateiro:

- Irás e virás,
na praça me acharás
meio dentro e meio fora
e então me pagarás!

O almocreve tomou Gonçalo Anes por meio parvo. E, ao rir-se do negócio, lá se foi embora, calculando que nunca mais passasse em Trancoso. Mas enganou-se.
Dali a uns tempos, novo recado o levou à velha praça. E quando entrou soavam as campanas. Era enterro e toda a gente se encontrava no largo principal. Disseram-lhe que o morto era o sapateiro. Ele olhou para a igreja e viu o caixão meio dentro, meio fora da igreja. Percebeu então a profecia, a mensagem. E adiantou-se a dizer que o funeral corria por sua conta, pagando o que lhe devia.
Fica aqui também a indicação de Bandarra aos vindouros:

Em dois sítios me achareis 
Por desgraça ou por ventura:
Os ossos na sepultura;
A alma nestes papéis.

E da filha Maria contam que, tendo sido presa, por integrar o elenco de uma peça de teatro, aos dois guardas que a prenderam em sua casa vaticinou que dos três, apenas dois chegariam ao destino. Face ao suposto descaro, eles empenharam-se numa marcha forçada para a cadeia. Afinal, não se tratava da fuga dela mas um dos homens sucumbiu com um ataque de coração.



O Rei dos Cervos

Ao chegar a Vila Nova de Cerveira, e ao olhar para o mais alto dos montes, podemos ver o vulto de um cervo. Trata-se duma escultura de José Rodrigues. Segue a lenda do rei dos cervos, o Cervo Rei, que é o que representa essa escultura:
Há muitos anos atrás, sendo a caça uma questão de sobrevivência, havia já à mesa um certo prazer que indicava que a carne de cervo era uma das mais saborosas. E os servos sentiram na pele as lanças e as setas dos seus perseguidores, pelo que se foram metendo para uma das matas montanhosas junto a um rio, buscando a salvação. E pensaram que se estivessem organizados, melhor se salvariam das perseguições. Importava conseguirem um chefe que os dirigisse. E esse chefe teria de ter a sabedoria e a capacidade de ser tão importante quanto um deus. E logo surgiu entre eles um cervo enorme e poderoso a quem prestaram homenagem e obediência. E o Cervo Rei decidiu que deveriam constituir um reino onde ninguém mais entrasse, que seria a salvação de todos. E bem lutaram todos contra homens e outros animais que ousavam entrar nos limites da Terra da Cervaria; isto fez com que o Rei dos Cervos se julgasse invencível. E quando se formou o Reino de Portugal, naquela montanha que vemos, só o Cervo Rei existia de uma manada enorme que havia povoado a Terra de Cervaria. Calhou então que um cavaleiro português entendesse não ser aceitável que encostado ao novo reino de Portugal houvesse um reino de cervos. Desafiou então o Cervo Rei para um combate sem tréguas. 
Aceite o duelo, preparou-se o cavaleiro, levando o seu mais belo escudo, adornado com as cinco quinas. No entanto, o Cervo Rei venceu e matou o cavaleiro, e o majestoso animal, na posse do escudo e da bandeira, retirou-se para as suas paragens. E lá no alto fez desfraldar a bandeira do adversário para fazer saber que fora ele o senhor da vitória. Porém, a partir daí, cada vez menos se viu o cervo até que, as gentes, que não cessavam de vigiar a Terra de Cervaria, entenderam que podiam meter o pé à vontade naquele lugar proibído. E logo lá entrou um grupo que foi dar com o cadáver do Rei Cervo, esquelético, chagado, tendo entre as patas o escudo com as quinas portuguesas. Os homens fixaram-se então num povoado que construíram à beira do rio. E na bandeira colocaram um cervo num fundo verde, que representa aquela bela terra do Alto Minho.



A Senhora que Passou


Era uma vez um velho que viajava a pé acompanhado pela filha. Evitavam as grandes povoações, não queriam envolver-se em conversas com ninguém, sempre metidos consigo mesmos, como se levassem consigo um grande segredo. 
O velho passava o tempo prevenindo a filha sobre possíveis espiões que os seguissem, mas ela não se perdia da sisudez, e continuava a seguir as indicações do pai.
Uma tarde, a moça, Joana de seu nome, estava cheia de sede; e disse-o ao pai, que queria ir procurar água. O pai sentou-se então na berma do caminho e ela meteu por um campo onde decerto encontraria fonte ou ribeiro. E encontrou um ribeiro com uma água magnífica. Bebia, encantada, quando escutou uma voz que lhe dirijou um madrigal:
- Por vós, transformar-me-ia em rio, se necessário.
Acabou por saber que a voz era do próprio ribeiro, que lhe declarou o seu amor e lhe pediu que o tratasse, ao menos uma vez, por amor. E ela assim o fez e o ribeiro disse-lhe que a seguiria por onde ela fosse.
Acompanhando o pai em nova caminhada, sentiram ambos um ruído que parecia segui-los. O velho parecia recear o ataque de alguém, mas ela procurava tranquilizá-lo.
Chegaram já bastante tarde à entrada duma povoação e encontraram hospedagem. O velho adormeceu e a rapariga foi ver se aquele ruído intermitente era, de facto, do ribeiro. Encontrou-o já um rio grande. E o rio falou-lhe, reiterando o seu amor.
Entusiasmada, ela perguntou-lhe então se poderia adquirir forma humana. Respondeu-lhe que sim, mas se a adquirisse duraria apenas um dia, seria uma vida por 24 horas, e passado esse tempo, desapareceria para sempre. No entanto, como prova do seu amor, dispunha-se o ribeiro, então rio, a assumir-se homem para que ela o visse. Ela rogou-lhe que não o fizesse, mas o rio respondeu-lhe que não tinha nenhuma expectativa de vida, por isso...
E de repente, junto da rapariga surgiu um jovem amável e belo para viver o seu único dia de vida. Iam já lançar-se nos braços um do outro quando surge o pai de Joana, aos gritos, dizendo que ela o atraiçoava com aquele homem. E agarrou-a por um braço, levando-a dali. Chorosa, a jovem acompanhou o pai.
Porém, a figura humana do rio perguntava às pessoas se a tinham visto:
- Aquela senhora, passou por aqui, passou? Passou?
E tanto perguntou por ela que aquele lugar chamou-se doravante Passô. E o rio que banha esse lugar é desde então, o Rio Homem. 


fonte: Lendas de Portugal, Viale Moutinho