16 de jan. de 2019

Arqueoastronomia


A arqueoastronomia é o ramo disciplinar que se dedica ao estudo das antigas astronomias e das suas diversas expressões, designadamente do ponto de vista da arqueologia, da organização espacial, da religião e das ideias. Os estudiosos das arqueoastronomia recrutam-se entre os puros e simples curiosos (especialmente nos primeiros tempos, e que muitos deles eram "antiquários" à moda iluminista do séc. XVIII, agindo essencialmente por intuição), entre astrónomos, historiadores e arqueólogos. Mas o caminho da arqueoastronomia foi difícil e só nos finais do séc. XX então reconhecida a sua importância para o conhecimento das sociedades pré-históricas e das paisagens arcaicas. Até lá era considerada apenas como um ramo das então desacreditadas "arqueologias alternativas" - muitas delas justificadamente, atendendo à superficialidade dos trabalhos e das "visões" que estavam na sua base. Por razões (muito propriamente) idiossincráticas (mas não só), é na Inglaterra que se situa a génese da arqueoastronomia científica. Pode considerar-se pioneiro neste campo de estudos o reverendo William Stukeley, que publicou em 1740 uma obra seminal: Stonehenge, a Temple Restored to the British Druids. Stukeley considerava o cromeleque de Stonehenge como um templo orientado pela posição dos astros - designadamente do Sol durante os solstícios - tendo como miras e referencias as "avenidas" de terra, os alinhamentos, mamoas e tumuli que se encontravam na paisagem em seu redor e a ele associados. Os seus factores teriam sido os druidas celtas, conforme às concepções pré-românicas, os quais teriam utilizado o "compasso magnético" para este fim. Ao mesmo tempo, entre 1740 e 1747, John Wood estudava os monumentos megalíticos de Stanton Drew chegando a conclusões semelhantes no que respeita aos alinhamentos megalíticos e aos cromeleques ali existentes. Embora o interesse pelos possíveis alinhamentos astronómicos dos monumentos antigos não se tenha desvanecido no seio da inteligentsia  das Ilhas Britânicas, é nos finais do século XIX que este campo de trabalho é objecto de um forte impulso através dos estudos do verdadeiro fundador da arqueoastronomia ou arqueoastrologia, Sir Norman Lockyer, editor da prestigiada revista Nature. Sir Norman havia estudado em particular detalhe os templos egípcios, tendo concluído, entre outras matérias relevantes, que o templo de Amon-Rá em Karnak se encontrava devidamente orientado pelo põr-do-sol do solstício de verão, o que se conjugava com outras observações relativas à importância do ciclo de cheias do Nilo e dos seus anunciadores celestes, tais como a estrela Sothis, em íntima relação com a deusa Ísis. Estendeu depois as suas pesquisas a Stonehenge e a outros monumentos megalíticos britânicos, publicando em 1906 o livro Stonehenge and other British Stone Monuments Considered, no qual demonstra ter achado a linha que atravessa o monumento e que o alinha com outros monumentos da paisagem tendo como intenção o desempenho de uma função astronómica - neste caso o da marcação do nascer-do-sol solsticial (e o seu poente), algo que já se sabia, acrescentando-lhe agora a possibilidade de datação por esta via. Datava Stonehenge 1680 a.C., o que se sabe hoje ser muito próximo da realidade, uma vez que Lockyer apontava para uma data da idade de Bronze atribuível à forma final do anel de pedras. De facto, corrigidas as tabelas pelas quais Lockyer fizera os seus cálculos,  a data encontrada seria de 1820 a 200 a.C., o que corresponde às datações modernas. Contemporâneos de Lockyer e seus seguidores prosseguiram trabalhos neste domínio, salientando-se H. Boyle Sommerville, que estudou vários monumentos escoceses e das Hébridas, entre os quais o cromeleque de Callanish.

Embora com imperfeições, estes estudos foram confortando todos os que pensavam na possibilidade de os monumentos pré-históricos poderem deter uma carga informativa ainda maior do que normalmente se atribuiria a um qualquer "povo primitivo", não sendo estranha a este facto a valorização do druidismo. Outro grande impulso veio pela mão de um curioso, Alfred Watkins, que dedicou parte da sua vida a identificar na paisagem britânica alinhamentos compósitos perfeitamente rectilíneos. Estes alinhamentos compósitos eram constituídos indiferencialmente por monumentos pré-históricos, mamoas, estradas, pontes, igrejas, lagos, cristas de montes, agrupamentos de árvores, cancelas ou vestígios de cadastros. O sistema explicativo que construiu foi exposto numa obra de 1925, The Old Straight Track. Neste livro, para além de revelar alguns destes alinhamentos, baptizava-os com uma designação que ainda hoje se usa nos meios da arqueologia alternativa: leys. A expressão - na realidade, um neologismo - é intraduzível, mas para efeitos práticos poder-se-ia chamar-lhes em português linhas. O sistema de leys de Alfred Watkins procedia também a uma leitura interpretativa destes alinhamentos, considerando-os como resultantes, quer de uma espécie de feng shui  pré-histórico europeu, que dispusesse no terreno, independemente das épocas, marcos ou monumentos, itens artificiais da paisagem, de modo a respeitar uma "energia da terra" (o lung mei chinês), em harmonia com o cosmo, ou de modo a assinalar a observação dos astros. Depois de um período de esquecimento, a questão das leys voltou à ordem do dia durante os anos e desde então popularizou-se, por toda a Inglaterra, a "caça às linhas", ou ley hunting, suportada inclusivamente por uma revista, The Ley Hunter. Apesar de serem verificáveis alguns dos alinhamentos identificados por Watkins e seus seguidores, tais como Paul Screetone e outros, o certo é que diversos estudos estatísticos  demonstram a fiabilidade do "sistema". Assim, embora seja possível que algumas das linhas sejam intencionais e correspondam a determinantes astronómicas (como por exemplo a que parte do cromeleque de Boscawen-un, em Land's End, na Cornualha, alinhada por outros tantos megalitos e apontando para o grupo de estrelas Plêiades em maio de 1380 a.C.), é quase certo que na sua maior parte resultem de um acaso, sem prejuízo de se saberem conectadas no espaço com algumas estruturas pré-históricas. Passaram aliás a ser somente consideradas válidas as leys com um alinhamento de mais de cinco pontos comprovados. Hoje em dia procedeu-se a um a revisão de do sistema de leys, motivada pelos trabalhos de Paul Devereux, verificando-se, isso sim, a existência em todas as civilizações de alinhamentos "rectos" ou rectilineares fundamentados em motivações astronómicas ou de carácter simbólico ("caminhos dos mortos", ou os ceques incas com a sua inter-relação de santuários, etc), muitas vezes traduzidos na paisagem de forma reconhecível (mas muitas vezes sem a precisão de uma "régua"). Paralelamente a Watkins, uma teoria idêntica foi concebida na Alemanha por Wilhem Teudt, comprometida porém na sua aceitação geral pelo facto de o nazismo se ter dela apropriado para ajudar à construção da sua autogratificante mitologia nazi-germânica - o que não desagradaria ao próprio Teudt... Extermenstein, considerado um "altar da pátria" e, efectivamente um dos lugares mágicos da Alemanha teutónica, com os seus impressionantes penhascos onde residia a Irminsull (a árvore sagrada dos Germânicos), seria um dos pontos na paisagem assinalando o nascer do sol no solstício do verão e uma das estações mais setentrionais da lua. E, invariavelmente, voltamos a Stonehenge, desta vez cerca de sessenta anos depois de Lockyer e pela mão do astrónomo americano Gerald Hawkins. Num artigo publicado na revista Nature, Hawkins identifica com precisão científica em Stonehenge os vários alinhamentos e pontos de mira gerados pela estrutura do monumento na sua relação exterior com outros marcadores (menires, "avenidas" de terra). De diversas "estações" de observação seria possível aos construtores de Stonehenge calcular em detalhe diversas efemérides astronómicas, entre elas os solstícios, os equinócios e as posições da Lua. Este estudo pioneiro, publicado em 1965 e intitulado apropriadamente de Stonehenge Decoded, dava o grande cromeleque como uma espécie de computador astronómico.

Teve repercussões quase imediatas, mas não foi globalmente aceite pela comunidade científica. O certo é que o engenheiro escocês Alexander Thom publicava em 1967 o seu levantamento de centenas de megalitos britânicos, com o título de Megalithic Sites in Britain, dando conta da precisão geométrica do traçado dos cromeleques e confirmando a sua relação com acidentes na paisagem ou outros monumentos megalíticos (menires de marcação e de mira, por ele designados de outliers). Não só constatou que os monumentos eram gerados de traçado, com múltiplos centros de modo a desenharem ovais e elipses (às vezes só muito ligeiramente identificáveis, o que acentuaria a sua intencionalidade), como descobre a existência de uma medida padrão, a jarda megalítica (megalithic yard e megalithic rod), com 2.72 pés, ou seja, 82,9 cm. Os cálculos de Thom advogam ainda a existência de um padrão geométrico "pitagórico"como matriz dos traçados (no caso concreto, o triângulo rectângulo). A maior parte dos monumentos teria ainda, segundo Thom, um conjunto de atributos de observação do movimento dos corpos celestes, permitindo assinalar o nascer e pôr-do-sol ou da lua em datas específicas, consideradas de significado mágico ou místico, bem como de estrelas.  Nenhuma das teses de Thom foi convincentemente desmontada, embora os trabalhos críticos de Douglas Heggie possam contribuir para uma maior reserva face a alguns dos resultados apresentados. Mas encontramo-nos  já, e desde o caso de Hawkins, em presença de uma arqueoastronomia académica, debatível e cada vez mais interessante para o conhecimento do homem pré-histórico, algo que os arqueólogos não deixaram de registar. O restauro do grande dólmen de Newgrange por Michael O'Kelly teve em consideração o facto de existir por cima da entrada do corredor uma clarabóia ou bandeira que permitia que os raios do sol no solstício de inverno penetrassem na câmara do monumento iluminando priviligiadamente a cabeceira, confirmando desta forma o valor simbólico dos astros na cosmovisão megalítica. Depois do decano arqueólogo Aubrey Burl ter confirmado a existência de alinhamentos astronómicos - na sua opinião, porém, muito menos precisos do que Thom pretendia - o certo é que não existe uma única abordagem contemporânea dos monumentos megalíticos qua não estude as suas eventuais referencias astronómicas e simbólicas. Martin Brennan, já nos anos 80, advogou com êxito uma estratégia de estudo que mostra até que ponto é que os megalitos e a arte gravada que eles encerram se encontram relacionados com a observação dos astros. O posicionamento de algumas das gravuras, iluminadas em momentos do ano pelo sol ou pela lua, constituirão a prova de uma pensamento astronómico-simbólico entre os construtores de megalitos, para mais avançando a proposta que alguns dos motivos da arte megalítica (rosáceas, semicírculos, sequências de sulcos, repetições dos mesmo motivos com variantes) são registos precisos de ciclos astronómicos e, portanto, representações abstractas de preocupações com o estabelecimento de calendários. Todas as hipóteses são hoje possíveis e existem diversos investigadores a trabalhar nestes dados, entre os quais se contam Clive Ruggles e Michael Hoskin.


Todavia, alertam para factores extremamente importantes para a análise do fenómeno arqueoastronómico. Em primeiro lugar a necessidade de nos assegurarmos de que as observações concordam de facto com a mudança do mapa celeste de época para época, por ser evidente que esse mapa se altera em função da chamada "precessão dos equinócios", ou seja, por força da inclinação do eixo da terra que se modifica completamente em ciclos de 26000 anos - o que quer dizer que uma distância temporal de 2000 anos ou de 4000 anos é extremamente significativa quando se calcula o movimento de astros mais "simples" - o caso do sol - mas especialmente quando se trata de eventuais alinhamentos estelares ou de asterismos (as constelações). O que os povos da pré-história viam no céu não é o mesmo que nós hoje vemos quando olhamos para essa mesma região. Uma tabela de cálculos ou programas de computador dão-nos hoje em dia, com  uma precisão total, superior à dos investigadores do século XIX e mesmo dos anos 60 do século XX, o retrato dos céus em diferentes períodos de tempo. Por sua vez, Hoskin chama a atenção para a necessidade de se estabelecer para cada monumento medições precisas complementares, para além da orientação (azimute do eixo do monumento). Assim, os elementos necessários em termos de levantamento são o azimute (o eixo), a altitude angular do horizonte (uma vez que os monumentos são rodeados de acidentes paisagísticos, e, portanto, o sol ou a lua só nascem ou se põem por detrás desses acidentes), e a latitude, dada a ligeira alteração da posição do nascer-do-sol à medida que nos deslocamos para norte. Por outro lado há ainda a possibilidade de existirem motivações astronómicas mais "complexas" ( as mais difíceis de provar, como sejam as relacionadas com o movimento da lua ou com referências estelares) ou devidamente mais "simples" (muito prováveis e nalguns casos quase certas, como seja a da orientação dos megalitos pelo sol). Outra questão que é necessário ter em conta é a existência de um outro tipo de "orientação", esta já não baseada em corpos celestes mas sim nos pontos relevantes da paisagem, considerados como referências importantes no quadro religioso, socioeconomico e ritual das culturas que construíram os monumentos megalíticos ou outros. De facto, sabemos já que alguns megalitos se "orientam" e alinham entre si, ou de dentro para fora, em direcção a um item  paisagístico, especialmente montanhas, geomonumentos de morfologia insólita ou "centros sagrados". Ao estudo deste tipo de orientação chamou Hoskin arqueotopografia. A arqueotopografia está na nossa opinião intimamente relacionada com aquilo a que podemos chamar uma cartografia arcaica, ou seja, uma interpretação da paisagem e dos seus marcadores de uma forma global, e que decorre de uma cosmovisão ou de uma cosmogonia. Caminhos "rectos" ou não, que ligam centros rituais documentados em inúmeras culturas, pressupõem a existência de uma mapeação do território em termos que hoje dificilmente poderemos reconstruir. É provável, aliás, que alguns motivos da arte rupestre pós-glaciar se reportem a esta mapeação de um território em função desses centros sagrados ou de cadastrações abstractas ou práticas relacionadas com a sua exploração. Acreditamos ainda que os monumentos e santuários da Idade do Bronze, bem como os da Idade do Ferro (para considerarmos apenas a pré-história e a proto-história) se poderão interpretar desta maneira.




Fonte: Lugares Mágicos de Portugal, Paulo Pereira    

Alexander Thom - Man, Megaliths and Statistics 1

Alfred Watkins - Early British Trackways

William Stukeley - Stonehenge, a Temple Restored to the British Druids
http://newensign.christsassembly.com/Stonehenge_Stuckley.pdf