Catarina Eufémia Balizarão, nascida na aldeia que dera apelido ao pai e ao avô (Balizarão) a 13 de fevereiro de 1928, estaria destinada a uma vida anónima, entre a vastidão loura das searas e a pequenez de sua casa, térrea e caiada. Teria trabalhado de sol a sol sob um grande chapéu de palha, para à noite, antes de adormecer de exaustão, se sentar um bocadinho à porta, ouvindo o verão atravessar o Alentejo. Teria tido filhos, netos e, eventualmente, teria morrido na sua cama, para ser pacatamente enterrada no cemitério local sem história nem grande destino.
Catarina Eufémia, camponesa que, de facto, trabalhou de sol a sol nas searas do Baixo Alentejo e habitou uma dessas casas modestas e caiadas, não conheceu os netos, não morreu, idosa, na sua cama, nem foi pacatamente sepultada no cemitério de sua terra. Foi assassinada pela Guarda Nacional Republicana, a 19 de maio de 1954, quando, à frente de um grupo de camponesas vinha solicitar ao patrão um pequeno aumento salarial. As dificuldades económicas eram muitas. Casada aos 18 anos com António Joaquim do Carmo, seu conterrâneo, Catarina mudou-se rapidamente para o Barreiro, vila de grandes tradições fabris a que acorriam então centenas de alentejanos. O jovem António Joaquim partira na esperança de arranjar um emprego na CUF. Conseguiu-o, mas a miragem da estabilidade, às portas de Lisboa, acabou-se depressa. Ao cabo de seis meses, era despedido e o agregado familiar, já aumentado pelo nascimento da primeira filha, Maria Catarina, regressou a Baleizão. António Joaquim tornou-se cantoneiro de estradas e a mulher não teve outro remédio senão voltar às mal remuneradas tarefas agrícolas, às quais se habituara desde os 9 anos.
O Alentejo do meio do século era um grande foco de descontentamento social. O regime, consciente de que tinha na alta burguesia rural um dos seus principais suportes, favorecia-a quanto podia: isto é, fixou artificialmente o preço do trigo e de outros cereais, permitindo assim, e tornando rentável, o seu cultivo em grande escala, favoreceu uma política de jornas baixas e reprimiu violentamente as reivindicações campesinas. Era o preço a pagar aos proclamados "senhores do trigo" que, dada a vital necessidade do bem que produziam, arrogavam-se possuidores de largos direitos sobre as estruturas sociais e económicas do país. Extremamente conservadores, defendiam o seu poder atacando qualquer tentativa de liberalização económica e constituindo associações estratégicas entre si. Salazar nada tinha a opor. O que se passava nos campos alentejanos, integra-se perfeitamente na filosofia que a ditadura procura incutir nos portugueses, quer nas cidades, quer nos campos. Pobres, mas honrados, os camponeses deveriam conformar-se com a sua situação porque a riqueza não dá a tal felicidade absoluta a que se aspira. A felicidade relativa obter-se-ia trabalhando, sendo útil à pátria e integrando-se nos deveres que esta exige. Mas a propaganda da boa casa portuguesa não obtém grande sucesso no Alentejo. Em 1938, o pintor Martins Correia pintara a série de quadros intitulada "A Lição de Salazar". Num deles surge o interior de uma dessas casas-modelo: desprovida de electricidade e, consequentemente, de electrodomésticos, onde tudo se faz à força de braços e com a ajuda das energias naturais: o fogo, a água e o sol. O Alentejano sabe, no entanto, onde acaba a pacata austeridade e onde começa a miséria.
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fonte: Mulheres Portuguesas, Maria João Martins, Vega