30 de jun. de 2019

Neruda, Ode à Alcachofra




A alcachofra
de terno coração
vestiu-se de guerreiro, 
erecta, construiu
uma pequena cúpula,
mantendo-se oculta
debaixo das suas escamas,
em seu redor
loucos, os vegetais
eriçaram-se,
tornaram-se
em gavinhas, espadanas,
bolbos comoventes,
debaixo da terra
adormeceu a cenoura
de ruivos bigodes,
a videira
ressecou os rebentos
por onde sobe o vinho,
a couve
dedicou-se
aos cozidos,
o orégão
a perfumar o mundo,
e a doce 
alcachofra
ali na horta,
vestida de guerreiro,
orgulhosa
e luzidia
como uma romã,
um dia
em grandes cestos
de vime, juntamente
com outras, entrou
no mercado
para realizar o seu sonho:
a milícia.
Em fileiras 
nunca foi tão marcial
como na feira,
os homens
de camisas brancas
entre os legumes
eram 
marechais
das alcachofras,
as filas apertadas,
as vozes de comando,
e o estrondo
duma caixa caindo,
é então
que chega 
Maria
com o seu cesto,
escolhe
uma alcachofra,
não a receia,
examina-a, observa-a
contra a luz como se fosse um ovo,
compra-a, 
enfia-a no seu cesto
com um par de sapatos,
um repolho e uma
garrafa de vinagre
e logo
que entra na cozinha
afoga-a na panela.
Assim acaba 
em paz
esta carreira
do armado vegetal
que se chama alcachofra,
depois
escama a escama
a despimos
comendo
a pacífica, 
deliciosa polpa 
do seu verde coração.



entrada do museu do vaticano, representação da glândula pineal


Neruda, Ode ao Tomate




A rua 
povoou-se de tomates,
meio-dia,
verão,
a luz
divide-se 
em duas
metades 
de tomate,
o sumo
corre 
pelas ruas.
Em dezembro
solta-se 
o tomate,
invade
as cozinhas,
entra pelos almoços,
senta-se 
tranquilamente
nos lava-louças,
entre os copos,
as manteigueiras,
os saleiros azuis.
Tem
luz própria,
grandeza piedosa.
Infelizmente,
temos de o assassinar:
enterra-se
a lâmina
na sua polpa viva,
é uma vermelha
víscera,
um sol
refrescante,
profundo,
inesgotável,
enche as saladas
do Chile,
casa alegremente
com a branca cebola,
e para o celebrar
deita-se-lhe 
o azeite,
filho
natural da oliveira,
sobre os seus hemisférios entreabertos,
adiciona
a pimenta
a sua fragrância,
o sal o seu magnetismo:
são os esponsais
do dia,
a salsa 
embandeira-se,
as migas
fervem ruidosamente,
o assado
bate 
à porta
com o seu aroma,
está na hora!
vamos!
e sobre
a mesa, na cintura
do verão
o tomate,
astro da terra,
estrela 
repetida
e fecunda,
mostra-nos
as suas circunvalações,
os seus canais,
a eminente plenitude
e a carnação
sem osso,
seu couro,
sem escamas nem espinhas,
oferece-nos
a prenda
da sua ardente cor
e toda a sua frescura.




28 de jun. de 2019

Neruda, Ode à Cebola




Cebola
luminosa redoma
pétala a pétala
cresceu a tua formosura
escamas de cristal te acrescentaram
e no segredo da terra escura
se foi arredondando o teu ventre de orvalho.
Sob a terra
foi o milagre
e quando apareceu
o teu rude caule verde
e nasceram as tuas folhas como espadas na horta,
a terra acumulou o seu poderio
mostrando a tua nua transparência,
e como em Afrodite o mar remoto
duplicou a magnólia
levantando os seus seios,
a terra
assim te fez
cebola
clara como um planeta
a reluzir,
constelação constante,
redonda rosa de água,
sobre
a mesa
das gentes pobres.
Generosa
desfazes
o teu globo de frescura
na consumação
fervente da frigideira
e os estilhaços de cristal
no calor inflamado do azeite
transformam-se em frisadas plumas de ouro.
Também recordarei como fecunda
a tua influência, o amor, na salada
e parece que o céu contribui
dando-te fina forma de granizo
a celebrar a tua claridade picada
sobre os hemisférios de um tomate.
mas ao alcance
das mãos do povo
regada com azeite
polvilhada
com um pouco de sal,
matas a fome
do jornaleiro no seu duro caminho.
estrela dos pobres,
fada madrinha
envolvida em delicado
papel, sais do chão
eterna, intacta, pura
como semente de um astro
e ao cortar-te
a faca na cozinha
sobe a única
lágrima sem pena.
Fizeste-nos chorar sem nos afligir.
Eu tudo o que existe celebrei, cebola
Mas para mim és
mais formosa que uma ave
de penas radiosas
és para os meus olhos
globo celeste, taça de platina
baile imóvel
de nívea anémona
e vive a fragrância da Terra
na tua natureza cristalina.


a percepção da realidade é como descascar uma cebola,
camada após camada


26 de jun. de 2019

budismo, hinduísmo, tantrismo... mais uma trip "through the rabbit hole"

confesso que me identifico um pouco com todas estas filosofias esotéricas originárias do oriente, no sentido de conseguir "picar" algo de verdadeiro em cada uma - mas não ao ponto de deixar de olhar para o todo com um sentido crítico; o budismo centra-se à volta da figura de Sidarta Gautama e dos seus ensinamentos, e como acontece com a figura de Jesus ou Maomé, não se sabe até que ponto as pessoas reais viveram sequer, se foram avatares incarnados, se foram vulgares rebeldes cuja mensagem foi posteriormente dourada e aumentada pelos historiadores - não sabemos, não estivemos lá, não experimentamos. 
li, e não sei até que ponto a afirmação será verdadeira, que Buddha terá dito algo do género: "Eu não quero ir para o céu porque de qualquer das formas eu estou para além de todo sofrimento; onde quer que você me coloque, é assim que eu me sentirei. Então deixe-me ir para o inferno. Você diz que as pessoas sofrem lá, então eu vou fazer alguma coisa nesse lugar; em todo o caso, eu me desenvolvi de uma maneira que não posso sofrer. Então deixe-me ir para o inferno."
assim que li tive um click instantâneo - terá sido um sentimento semelhante que nos levou a querer incarnar neste planeta-prisão? em todo o caso eu não me revejo neste tipo de afirmação, e assim como não me revejo nestas novas tendências que defendem uma purificação e evolução através de uma fuga às pessoas e situações tóxicas (estás na merda, a culpa é toda tua, tu é que atraíste as situações, tu é que pediste para viver tudo isto antes de nascer, então fode-te praí sozinho) - dizer que se está para além de todo o sofrimento para mim é apenas uma posição de arrogância espiritual, e denota nada mais do que uma simples falta de empatia.
entendo que até certo ponto temos de nos afastar dos conflitos para nos podermos conhecer a nós mesmos, evoluir e crescer como pessoas, ninguém mais do que eu poderá defender essa posição - o que não quer dizer que nos tenhamos todos de refugiar no cimo de uma montanha, por muito apelativa que seja essa ideia!


de volta ao tema, o budismo está na moda, com toda a gente a querer decorar a casa com buddhas, mandalas e outros motivos zen, que sem qualquer tipo de dúvida são apelativos - assim como a banalização do yoga nas academias e até a banalização do sexo tântrico, de uma maneira tão escandalosa que a mim me parece mais uma prostituição da mulher no sentido de a escravizar ao ponto de a utilizar como um meio para obter poder e energia - lembram-se de Crowley e das suas discípulas? dizer que o sexo está na base de tudo é tão tipicamente freudiano, a mulher não tem de ser um meio para atingir um fim, se houver união entre o divino feminino e o divino masculino óptimo, mas não existindo isso não somos menos pessoas em nada, poderá ser um ponto de partida para outros voos e nunca uma obrigação... e isto das modas acaba por ser complicado porque sempre ficamos com a pulga atrás (o meu apelido na secundária era minoria, e não era por ser pequenina, mas sim por estar constantemente contra a maré) - será somente mais uma caixa para acomodar aqueles que estão fartos e desiludidos com o cristianismo? porque apesar de diferentes, ambas as ideologias se focam na noção do sofrimento, e no budismo há a ideia da flor de lotus que prospera nas águas lodosas e estagnadas de um lago, assim como a roda de samsara e toda essa treta, vamos reincarnar e resolver todos os problemas que causamos nas vidas passadas - de quantas vidas precisamos até atingir a iluminação? e não nos esqueçamos de evitar a carne para não absorver a energia dos animais na altura da matança - surprise, surprise, as plantas também têm sentimentos!
religiões que incorporam o sofrimento de uma forma ou outra não me convencem, e quem ou o quê beneficia com o sofrimento humano? haverá forma de conseguir que os nossos parasitas deixem de nos parasitar sem que definhem e morram? quando alguém descobrir uma ideologia que defenda uma maneira eficaz e justa de quebrar com todo o ciclo de sofrimento e parasitação, me avisa vai :), ou como Khaleesi diria, "I'm not going to stop the wheel. I'm going to break the wheel."


14 de jun. de 2019

Ofélia Queirós (nascida a 14 de junho, Pessoa a 13 de junho)

Fernando Pessoa não se perdeu de amores por uma dama singular, mas por uma menina de 19 anos que, num belo dia de primavera, procurou emprego na Félix, Valadas & Freitas, Lda., empresa na qual o poeta prestava serviços a um primo. A jovem Ofélia era uma dessas jovens que, na década de 20, descobriu o desafio da emancipação. Não que tivesse fumado longas cigarrilhas ou passado noites brancas e frenéticas no Maxim's; mas, como filha mais nova de uma família de 8 irmãos, não se deixou ficar à sombra dos mimos habituais nestes casos. Fez o 5º ano singular de Francês, falava correctamente este idioma, escrevia em todos os teclados e, chegada à idade de 19 anos, resolveu  rentabilizar estes conhecimentos num emprego que lhe valia a bela soma - estávamos em 1920 - de 18$. Já não era, pois, um ornamento de salão de chá como as mulheres da geração da sua mãe, mas continuava a não ter qualquer preparação prática para a vida de casada, ou seja, nada sabia sobre sexualidade, gravidez, parto ou educação dos filhos. Leria, talvez, a Voga, a revista feminina mais "in" da época, mas talvez não desprezasse os conselhos mais prosaicos incluídos no Guia Mundano das Meninas Casadoiras. As vamps, e mulheres fatais eram uma fantasia de ecrã, enquanto que o casamento se afigurava o horizonte mais próximo.
Não estaria pois em equilíbrio intelectual com o amado. As cartas de Fernando revelam-nos uma Ofélia irritantemente confundida pela introdução de Álvaro de Campos na conversa oral e escrita, pelo que ele não terá sequer mencionado Ricardo Reis, Alberto Caeiro ou Bernardo Soares. O seu objectivo, como o de todas as raparigas dos anos 20, seria o casamento. Pessoa mostrava-se reticente, dizendo, numa carta de 1920: "Quando me dizes que o que mais desejas é que eu case contigo, é pena que não me expliques que tenho ao mesmo tempo que casar com a tua irmã, teu cunhado, teu sobrinho e não sei quantas freguesas da tua irmã." Aliás, este é o mesmo autor que, através de Álvaro de Campos em Lisboa Revisited, escrevia em 1923: "Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disso, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa fazia-lhes a vontade."
As cartas de amor do poeta são a única fonte que nos permite evocar a figura de Ofélia, embora saibamos que um apaixonado vê a vida elevada ao cubo, sendo por isso uma péssima testemunha... Em todo o caso, ela surge-nos alegre, encantadora de maneiras e insinuante (Pessoa ousa chamar-lhe "corpinho de tentação"), determinada, mas também bastante vulnerável a intrigas e, sobretudo, aos conselhos de sua irmã mais velha que não se mostravam muito favoráveis ao apaixonado.
O seu namoro era clandestino. Por qualquer motivo, ele não queria publicitar os seus amores nem que lhe chamasse "namoro", tendo dito certa vez: "Não digas a ninguém que nos namoramos, é ridículo. Amamo-nos." A própria família do poeta não teve conhecimento da ligação, senão depois de sua morte, quando foram descobertas as cartas e postais enviados por Ofélia. Na família dela, a confidência parece ter sido confinada somente à tal irmã, já que o seu pai aparentemente não parecia ser para graças. A primeira fase da relação, vivida durante o ano de 1920, teve, apesar disso, todas as características dos namoros antigos: alimentando-se de bilhetinhos, olhares, troca de presentes carinhosos, trajectos de carro eléctrico à saída do emprego dela e encontros após a missa de domingo, na Igreja da Conceição Velha. Sempre dentro do respeito que a época e os costumes impunham aos namorados, Fernando dava conta a Ofélia da angústia que o tomava sempre que não a via, dos ciumes e intrigas que cada um deles inventava ao outro em sinal do desassossego característico dos apaixonados. No entanto, no outono, ambos estavam já num beco sem saída. Uma carta dele, em 29 de novembro, porá termo a esse namoro a que ele preferia dar o simples nome de amor: "Se a vida que é tudo passa por fim, como não hão-de passar o amor e a dor e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?". A relação foi retomada 9 anos depois, a propósito de uma fotografia de Pessoa (uma das suas mais famosas, em que surge no Abel Pereira da Fonseca em flagrante "delitro"), por ele oferecida a Carlos Queirós, sobrinho de Ofélia.
Tomada de súbita saudade, ela quis uma também para si, e como mulher determinada que era, não hesitou em pedi-la e em restabelecer o vínculo julgado perdido. Ela tinha 28 anos e Fernando 40. Ela, apesar de ter tomado a iniciativa de retomar a relação (o que era considerado uma ousadia para uma mulher dessa época), notava-o diferente: obeso e pouco disponível para o amor, de tal modo estava absorvido pela sua obra literária. O casamento repugnava-lhe mais do que nunca, dizendo mesmo à namorada: "Durmo pouco e com um papel e uma caneta à cabeceira. Acordo durante a noite e escrevo, tenho de escrever, e é uma maçada porque depois a Bebé não pode dormir descansada." Numa carta de 29 de setembro, chega mesmo a confessar-lhe: "Se me casar, não será senão consigo. Resta saber se o casamento, o lar (ou como se lhe quiser chamar) são coisas adequadas à minha vida e ao meu pensamento. Tenho dúvidas." Após a ruptura definitiva, continuaram ainda a trocar telegramas nos respectivos aniversários (o dele a 13 de junho e o dela a 14 de junho, ambos do signo Gémeos), até à morte de Pessoa. As cartas de amor de Fernando Pessoa foram comentadas pela primeira vez, por João Gaspar Simões, e mais tarde por Carlos Queirós, sobrinho de Ofélia, grande amigo do poeta. Queirós publicou 13 destas num texto intitulado " Carta à Memória de Fernando Pessoa", onde dizia: " As suas cartas de amor! Porque você amou, Fernando, deixe-me dizê-lo a toda a gente. Amou e, o que é extraordinário, como se não fosse Poeta."


fonte: Mulheres Portuguesas, Maria João Martins, Vega  

10 de jun. de 2019

Catarina Eufémia (Mulheres Guerreiras)

Catarina Eufémia Balizarão, nascida na aldeia que dera apelido ao pai e ao avô (Balizarão) a 13 de fevereiro de 1928, estaria destinada a uma vida anónima, entre a vastidão loura das searas e a pequenez de sua casa, térrea e caiada. Teria trabalhado de sol a sol sob um grande chapéu de palha, para à noite, antes de adormecer de exaustão, se sentar um bocadinho à porta, ouvindo o verão atravessar o Alentejo. Teria tido filhos, netos e, eventualmente, teria morrido na sua cama, para ser pacatamente enterrada no cemitério local sem história nem grande destino.
Catarina Eufémia, camponesa que, de facto, trabalhou de sol a sol nas searas do Baixo Alentejo e habitou uma dessas casas modestas e caiadas, não conheceu os netos, não morreu, idosa, na sua cama, nem foi pacatamente sepultada no cemitério de sua terra. Foi assassinada pela Guarda Nacional Republicana, a 19 de maio de 1954, quando, à frente de um grupo de camponesas vinha solicitar ao patrão um pequeno aumento salarial. As dificuldades económicas eram muitas. Casada aos 18 anos com António Joaquim do Carmo, seu conterrâneo, Catarina mudou-se rapidamente para o Barreiro, vila de grandes tradições fabris a que acorriam então centenas de alentejanos. O jovem António Joaquim partira na esperança de arranjar um emprego na CUF. Conseguiu-o, mas a miragem da estabilidade, às portas de Lisboa, acabou-se depressa. Ao cabo de seis meses, era despedido e o agregado familiar, já aumentado pelo nascimento da primeira filha, Maria Catarina, regressou a Baleizão. António Joaquim tornou-se cantoneiro de estradas e a mulher não teve outro remédio senão voltar às mal remuneradas tarefas agrícolas, às quais se habituara desde os 9 anos.
O Alentejo do meio do século era um grande foco de descontentamento social. O regime, consciente de que tinha na alta burguesia rural um dos seus principais suportes, favorecia-a quanto podia: isto é, fixou artificialmente o preço do trigo e de outros cereais, permitindo assim, e tornando rentável, o seu cultivo em grande escala, favoreceu uma política de jornas baixas e reprimiu violentamente as reivindicações campesinas. Era o preço a pagar aos proclamados "senhores do trigo" que, dada a vital necessidade do bem que produziam, arrogavam-se possuidores de largos direitos sobre as estruturas sociais e económicas do país. Extremamente conservadores, defendiam o seu poder atacando qualquer tentativa de liberalização económica e constituindo associações estratégicas entre si. Salazar nada tinha a opor. O que se passava nos campos alentejanos, integra-se perfeitamente na filosofia que a ditadura procura incutir nos portugueses,  quer nas cidades, quer nos campos. Pobres, mas honrados, os camponeses deveriam conformar-se com a sua situação porque a riqueza não dá a tal felicidade absoluta a que se aspira. A felicidade relativa obter-se-ia trabalhando, sendo útil à pátria e integrando-se nos deveres que esta exige. Mas a propaganda da boa casa portuguesa não obtém grande sucesso no Alentejo. Em 1938, o pintor Martins Correia pintara a série de quadros intitulada "A Lição de Salazar". Num deles surge o interior de uma dessas casas-modelo: desprovida de electricidade e, consequentemente, de electrodomésticos, onde tudo se faz à força de braços e com a ajuda das energias naturais: o fogo, a água e o sol. O Alentejano sabe, no entanto, onde acaba a pacata austeridade e onde começa a miséria. 
Em maio de 1954 a situação continuava a mesma: salários de miséria durante a época das colheitas, desemprego e fome quando os trabalhos rurais cessavam. Os trabalhadores da zona de Baleizão decidiram, por essa altura, entrar em greve, reivindicando um aumento de 2$ para os respectivos salários. Os patrões temiam pelas plantações. mas não estavam dispostos a criar um precedente. Prefeririam utilizar seareiros vindos de fora, o que, em todo o caso, lhes ficava mais caro. Perante tal facto, algumas mulheres procuraram dialogar com um dos patrões, Fernando Nunes Ribeiro, levando à frente Catarina Eufémia, de 26 anos, que ao colo levava o seu filho mais novo, José Adolfo, de apenas 8 meses (durante anos disse-se que estava grávida, mas hoje há quem ponha isso em causa). Todavia, ao contrário do que elas pensavam, o proprietário estava ausente, retido em Beja por um problema de saúde. O encarregado da propriedade, José Vedor, não soube, por outro lado, lidar com a situação. Tratou de pintar a situação tão negra a Fernando Nunes Ribeiro que este não hesitou em chamar a Guarda Nacional Republicana, precipitando a tragédia. Este órgão de autoridade era, no Portugal do Estado Novo, um eficaz instrumento de repressão dos populares. Frente a frente com este grupo de camponesas reivindicativas, o tenente Carrajola comportou-se como muitos dos seus semelhantes espalhados pelo país fora - em fevereiro desse mesmo ano, já a GNR insultara uma comissão de 25 mulheres em Vale do Vargo e espancara uma delas. Por isso, quando Carrajola esbofeteou e metralhou Catarina Eufémia, que lhe dissera vir à procura de trabalho e pão, só o excesso surpreendeu as gentes do Alentejo. Ao resto - insultos e repressão por parte da GNR - já eles se tinham habituado. O enterro de Catarina Eufémia  não foi mais pacífico  do que a sua morte. Receosas das reacções populares, as autoridades vigiaram escrupulosamente o velório no necrotério do Hospital de Beja, permitindo somente o acesso aos familiares mais próximos, enquanto no exterior  uma multidão de camponeses aguardava a saída do funeral. Foi em vão que essas autoridades o anteciparam uma hora e foi em vão que o levaram para o cemitério de Quintos, em vez de  Baleizão, como se esperava. Várias centenas de pessoas, apesar de ameaçadas pela presença policial, não transigiram e insistiram em despedir-se dessa mulher jovem que pagara a luta pela sobrevivência  com a vida.

fonte: Mulheres Portuguesas, Maria João Martins, Vega

    

3 de jun. de 2019

algumas ideias sobre as instituições de caridade


muitas vezes me questionei sobre o motivo das campanhas de recolha de alimentos se realizarem nos supermercados, impelindo-nos ao consumo, beneficiando as grandes superfícies - nesta última feira estive em conversa com duas pessoas bastante genuínas, sobre o tema das caridades, e o assunto veio à baila quando confessei que ocasionalmente visitava algumas dessas associações que recolhem recheios de casa, a comprar uma peça ou outra a bom preço para vender ao fim-de-semana - ao que ambos se exaltaram - o rapaz que estava ao meu lado, um tipo calado e discreto, levantou-se enervado e começou a contar um pouco do seu percurso, de situações que se passaram com ele, como a do cabaz de natal da junta de freguesia, que supostamente deveria incluir meio bacalhau e que aparentemente foi surripiado por um dos funcionários da junta... "...eu sou pobre...", bradava ele, tão exaltado que já estava vermelho "...não tenho internet, e o meu carro é este..." e apontava para o carrinho de mão onde tinha trazido os discos que estava a vender - "você sabe o motivo dessas campanhas se fazerem nos supermercados? porque metade dos produtos são vendidos de volta para os supermercados a metade do preço - isto depois dos chefões dessas associações terem ficado com parte dos bens para levarem para casa..."-  isso já eu sabia, não é preciso ter uma bola de cristal para adivinhar as verdadeiras motivações para as pessoas se envolverem em caridade, e o caso das raríssimas é apenas um exemplo - tanta gente contribui nessas campanhas ao fim-de-semana, e o número dos sem-abrigo diminui? claro que não! têm de haver pobres, se acabassem lá se ia a mama... a senhora por seu turno contou-me que em tempos fez limpeza numa casa que pertencia a um casal, um médico e uma professora reformados, e que estavam envolvidos numa dessas associações - pois na cave tinham um enorme compartimento onde armazenavam todo o tipo de bens que vinham para casa - indivíduos que possuíam uma boa reforma e que não tinham qualquer necessidade de açambarcar as coisas... acho engraçado que as pessoas me contem estes episódios e olhem para mim como se fosse uma burguesa decadente, a minha vontade é dizer-lhes "sou tão necessitada quanto vocês, não se fiem na minha aparência" 




a isto vou acrescentar a minha experiência quando fui a uma conhecida instituição de protecção aos animais, depois de me atirarem com duas gatas bebés para dentro do jardim - as minhas pestes - e que eu queria esterilizar, porque na altura vivia numa casa térrea e nunca se sabe quando uma porta fica aberta e elas fogem para a rua, nem tampouco necessitava de ter gatos vadios a marcarem-me o jardim e a tentar entrar em casa - pois fui  a essa associação e quem me atendeu deveria ser a "boss", pela atitude - inicialmente começou por desdenhar a gravidade da situação, inclusive dizendo que se não tinha meios para fazer face às despesas inerentes de ter um animal, mais valia entregá-lo! expliquei que estava desempregada, e que me tinha afeiçoado às gatinhas que tecnicamente me caíram em casa, que pedia apenas uma ajuda ou então que me indicassem um veterinário que fizesse uma atenção, então mostrei uma foto das bichinhas, onde se vê que uma delas é ceguinha de um olho - e foi nessa altura que gostaria de não saber ler expressões, vi perfeitamente que a fulana se preparava para me convencer a doar a gatinha, com o pretexto de que ela seria facilmente adoptada (desde que me conheço que desejava ter a capacidade de poder ler pensamentos, ultimamente estou mais céptica, tenho a certeza que se possuísse uma intuição mais aguçada eu seria muito mais infeliz, porque enquanto não sei das verdades nuas e cruas posso fantasiar coisas belas), a fulana estava-se a cagar para o animal, simplesmente viu ali a oportunidade de fazer uma campanha de angariação de fundos para ajudar a fazer uma hipotética intervenção para fechar o olho e sabe-se lá mais o quê...