
Este é o princípio das antigas histórias do Quiché, onde se dirá, em língua de cristãos (temos livro antigo e original destas coisas, mas já não se entende), a luz e a sombra, o claro e o escuro do Criador e Formador, Mãe e Pai de tudo.

O Criador e Formador de tudo, Mãe e Pai da vida e da criação, gerador da respiração e do movimento, concessor da Paz, aperfeiçoou e rematou as coisas todas. Pois ele é Claridade, o garante da formosura inteira existente no céu e na terra, nos lagos e no mar.
Então não havia homens, nem animais, nem pedras, nem nada. Por cima dos vastos plainos, o espaço jazia imóvel, e sobre o caos descansava a imensidade do mar num silêncio absoluto. Nada estava junto, nem ocupado. O de baixo não se assemelhava ao de cima. Não havia coisa em ordem, coisa que tivesse ser.
No silêncio das trevas, viviam os deuses Tepeu, Gucumatz e Furacão, cujos nomes guardam os segredos da criação, da existência e da morte, da terra e dos seres que a habitam. Falaram entre si, conferenciaram, manifestaram os seus sentimentos e, no meio da escuridão, chegaram a acordo sobre o que deviam fazer. Assim se criaram as criaturas.
Coração do Céu, chamado Furacão, criou as árvores e a vida.
A primeira manifestação de Furacão chamava-se Caculiá Furacão, o Mais Pequeno dos Raios. A terceira Raxá Caculiá, Raio Muito Formoso.
E assim são três o Coração do Céu.
Primeiro foi criada a terra: montes, vales, planícies; dividiram-se os caminhos da água e irromperam muitos arroios por entre os cerros; em alguns sítios, as águas detiveram-se e apareceram as altas montanhas. Então afastaram-se as nuvens que enchiam o espaço entre o céu e a terra. Um aroma acre e doce desprendeu-se das florestas e de riquíssima seiva que começaram a surgir.

Ao ver o que tinham feito, os deuses disseram: a criação primeira é bela.
“Tu, veado”, disseram, “habitarás e dormirás nos barrancos e nos caminhos da água, terás quatro pés para andar entre ervas secas e ervas verdes, e nos montes te multiplicarás”.
E às aves assim falaram:

“Tu, ave, viverás nas árvores e nos penhascos, voarás pelos ares, alcançarás a região das nuvens, roçarás a transparência do céu e não terás medo de cair. Teus filhos e os filhos dos teus filhos farão o mesmo e seguirão, em tudo, o teu exemplo e a tua graça”.
E tomando cada ave a morada que lhe foi dada pelos deuses, habitaram Ulew, a Terra.
Havendo criado todas as aves e animais, disseram-lhes os Criadores:

Mas embora isto lhes fosse ordenado, não puderam falar com os homens: apenas uivar, cacarejar, gritar.
Tentaram articular e juntar as palavras e saudar os Criadores, mas não conseguiram; e desta sorte o ultraje lhes cobriu as carnes; e assim são mortos e comidos todos os animais que há na terra.

Vendo isto, os Criadores dissolveram-no e consultaram os velhos adivinhos Xpiyacoc e Xmucané, avós do Sol e da Lua, sobre como havia de se fazer o homem.
“Eia, Sol! Eia, Lua! Juntem-se e declarem se os Criadores devem formar o homem de pau. Fala, Milho! Tu também, Tzité! E tu, Sol! E tu, Lua! Eia, Milho! Eia, Tzité!”
Como resposta, o milho e o tzité assim falaram:
“De pau, está bem; a madeira falará com o homem quando ela lavrar”.
Multiplicaram-se e tiveram filhos e filhas, mas saíram tontos, sem coração nem entendimento. Andaram sobre a terra sem se lembrar do Coração do Céu.

Não tinham agilidade nos pés, nem sangue ou humidade nas mãos. Suas faces eram secas e pálidas os pés amarelos e macilenta a carne.
Multiplicando-se, os homens de pau chegaram a ser muitos sobre a terra.
Então, Coração do Céu castigou os homens de pau.
De além do céu, caiu uma enorme quantidade de resina e acabou por consumi-los.
Caiu uma chuva escura, chuva de dia, chuva de noite, sobre a cabeça do homem de pau.

Tudo em castigo por se haverem esquecido de seus Pais e Mães.

As mós diziam-lhes: “Muito nos atormentaste, toda a manhã e toda a tarde a fazer-nos gritar sem descanso joli, joli, juqui, juqui, moendo milho sobre as nossas caras; agora ireis saborear a nossa força: vamos moer as vossas carnes e transformar em farinha os vossos corpos”.
E falando, diziam-lhes os cães:
“Porque não nos deste a nossa comida, enquanto vos víamos comer? Havia sempre um pau a jeito para nos bater e expulsar. Como não falávamos, era assim que nos tratavam. Porque não cuidaste de nós? Agora saborearão os dentes que temos na boca: vamos comer-vos”.
Os tachos e as panelas falaram desta forma:

E os “tenamastes”, ou pedras onde se põem as panelas ao lume, diziam-lhes:
“Sempre nos expusestes ao fogo, causando-nos grandes dores; agora vamos rachar-vos a cabeça”.
Veio uma tormenta de granizo e os homens de pau trataram de salvar-se da inundação.


Por isso Coy, o Macaco, se parece com o homem.

Wukub K’aquix tinha dois filhos: Zipacná e Cab Rakan. A mãe chamava-se Chimalmat.

Souberam que Wukub K’aquix costumava ruminar os seus pensamentos de poder debaixo de uma árvore de nanças, comendo os frutos que tombavam maduros, amarelos, suaves, perfumados. Junaipu e Xbalamqué treparam à árvore e esconderam-se entre os ramos. Ali permaneceram insensíveis, silenciosos, como se fossem bonecos de pau.

Longo tempo assim ficaram, tão imóveis que os pássaros, sem medo, lhes pousavam na cabeça. Quando Wukub K’aquix estava entretido na sua comida, Junaipu, o mais ousado, soprou-lhe um bodoque com a zarabatana e atingiu-o na queixada, fazendo-o cair redondo, de mandíbula partida.

“ Dois demónios partiram-me as queixadas. Todos os dentes me doem e abanam; mas trago aqui o braço de um deles: pendura-o ao fumeiro sobre a fogueira, a ver se vêm procurá-los”.
Sentado numa laje à beira do caminho, Junaipu e Xbalamqué cavilavam sobre o que haviam de fazer. Resolveram ir consultar dois anciãos tão velhos que andavam curvados e pareciam corcundas.
Aproximando-se, disseram-lhes:
“Vinde connosco a casa de Wukub K’aquix buscar o braço de Junaipu; usai os vossos ardis para vencê-lo”.
“Está bem”, disseram os velhos.

Os velhos colocaram o braço de Junaipu no seu lugar. Depois, com calma nos espíritos e sossego nos corpos, os dois rapazes despediram-se e partiram, sempre por mandato do Coração do Céu.
Enquanto Zipacná, metido num rio manso que corria entre limoeiros e laranjeiras, gritava como um louco aos quatro ventos: “Só eu faço as montanhas! Ninguém mais as pode fazer assim tão altas e tão cheias de barrancos e tão povoadas de animais e tão cobertas de vegetação!”
Assim falava quando apareceram quatrocentos jovens que a duras penas arrastavam uma árvore: haviam-na cortado no monte para fazer as vigas de suas casas. Quase não podiam com ela e Zipacná, saindo das águas do rio, carregou-a sozinho. Aos jovens pareceu-lhes perigosa aquela força monstruosa e resolveram destruir Zipacná.


No fundo da sua cova, Zipacná, com tristeza, ouviu o que os jovens diziam, e decidiu vingar-se. Cortou as unhas e as pontas dos cabelos e deu-os às formigas, que os levaram para fora. Vendo este sinal, os jovens começaram a embebedarem-se de chicha. Derreados como bestas, iam dando tombos por caminhos e veredas. Ficavam prostrados, de boca aberta. Suavam um suor frio e fétido, enquanto lhes escorria, entre os dentes, uma baba escura e espessa.

Jupaipu e Xbalamqué sentiram tristeza pela morte dos jovens e meditaram em solidão acerca do que tinham que fazer para castigar Zipacná, que tantas provas de orgulho e de maldade vinha dando.

“O que fazes aqui?”
“Ando à procura da minha comida”, respondeu, “mas há três dias que não pesco nada. Já não consigo aguentar a fome”.

Ao chegar junto da cova, vendo o simulacro de caranguejo, tão grande e tão pançudo, de tenazes tão reluzentes e carapaça tão brilhante, Zipacná babou-se de gozo. Deitou-se no chão e tentou entrar na cova para agarrar o caranguejo, que ia recuando. No momento em que os seus pés desapareceram, os irmãos sacudiram os rochedos da cova e tudo desabou com estrondo. Zipacná ficou esmagado entre os escombros. Lançou um grito, estremeceu um momento e depois transformou-se em pedra. Vêm daí essas pedras brancas e lisas que pelos caminhos de pedra quiché encontram os viajantes. Dizem que ao humedecer-se quando chove, se queixam como Zipacná se queixou à hora da morte. Assim acabou a vida daquele que se ufanava, cheio de orgulho, demover montanhas e de ser filho do defunto Wukub K’aquix.

“Que também seja destruído Cab Rakan”.
Estava este a sacudir os montes quando chegaram os dois rapazes e lhe disseram:
“Sabemos montar armadilhas para apanhar pássaros e vimos agora mesmo uma montanha que está cheia deles, mas é tão alta e escarpada que não conseguimos apanhar nenhum. Se tu a deitasses abaixo, podíamos caçar muito pássaros”.
“Vem connosco”, disseram-lhe os rapazes. “Se houver pássaros no caminho, as nossas zarabatanas darão conta deles”.


Assim acabou Cab Rakan, vítima do orgulho de que fazia gala em terra quiché.
Tratemos agora do nome do pai de Junaipu e Xbalamqué.
Chamava-se Jun Junaipu, filho de Xpiacoc e Xmucané. Nasceram Jun Junaipu e o seu irmão Wukub Junaipu na escuridão da noite, antes de haver Sol e Lua e de ter sido criado o homem.

De Xbaquialó, Jun Junaipu teve outros dois filhos: Jun Batz e Jun Chowen.



Assim falaram Jun Camé e Wukub Camé, Senhores de Xibalbá, que mandaram os seus mensageiros Tucur e Tecolotes chamar os rapazes. Desejavama muito ver os apetrechos do jogo de Jun Junaipu e Wukub Junaipu, mas estes deixaram-nos em casa antes de partir com os mensageiros, que os guiaram até Xibalbá, o Inferno. Aí, chegaram a uma encruzilhada de quatro caminhos. O Caminho Negro disse-lhes que metessem por ele. Assim fizeram, dirigindo-se ao sítio onde os Senhores, sentados, os esperavam.

Vê-los naquele estado e assim enganados deu muita vontade de rir aos aos Senhores, e tanto se riram que lhes doíam os ossos e já espirravam sangue.

“Os Senhores, que vos enviaram este ocote e este tabaco, ordenaram que os mantenham acesos durante toda a noite e os entreguem inteiros amanhã de manhã”.
Eram muitos os castigos de Xibalbá, o Inferno:
O primeiro era aquela Casa Escura, onde só havia trevas.
O terceiro, a Casa dos Jaguares, onde só havia animais ferozes, e tantos eram que se devoravam uns aos outros.
O quarto, a Casa dos Morcegos, onde nuvens deste bichos voavam e chiavam.
O quinto, a Casa das Navalhas de Chay, de obsidiana, muito ponteagudas e afiadas, que chispavam umas contra as outras.
Ao amanhecer, os Senhores chamaram Jun Junaipu e Wukub Junaipu e perguntaram-lhes:
“Acabaram-se, Senhores”, responderam.
“Os vossos dias chegaram ao fim. Ides morrer”, sentenciaram os Ajawab de Xilbalbá, Senhores do Inferno.
Foram despedaçados e sepultados. A Jun Junaipu, cortaram-lhe a cabeça e colocaram-na na forquilha de um arbusto, à beira do caminho. Logo que foi posta ali, o arbusto frutificou; ao fruto que deu chamamos agora cabaças. Com o arbusto cheio delas, já não se soube qual era a cabeça de Jun Junaipu.


“Não irei embora sem provar tais frutos. Não vou morrer por causa disso.”
Interrompendo-lhe estes pensamentos, a cabeça que estava no arbusto falou:
“Desejas esta fruta de todo o coração?”
“Sim, desejo”, respondeu a donzela.
“Pois estende a mão direita”, disse a caveira.
Xquic estendeu a mão e logo recebeu nela um jacto de saliva, mas olha para a palma não viu coisa alguma. Disse-lhe a caveira:

Isto assim foi disposto e mandado pela sabedoria de Furacão, de Chipi Caluliá e de Raxá Caluliá, que são Coração do Céu.
Regressou a sua casa e por virtude dessa saliva concebeu dois varões: Jupaipu e Xbalamqué. Passados seis meses, o pai, Cuchumaquic, reparou no seu estado. Reuniu em conselho todos os Ajawab e sentenciou:
“Esta minha filha procedeu com desonestidade”.
O tribunal ordenou que a levassem para longe e lhe tirassem a vida.
“Pai e senhor meu, nunca conheci varão”, protestou ela.
Cuchumaquic não acreditou nas razões da filha. Chamou os quatro Ajawab Tucur, os quatro Senhores Tecolotes e disse-lhes:
“Tomai esta minha filha desonesta, sacrificai-a e trazei-me o seu coração numa cabaça”.
Os mensageiros levaram a donzela. Levaram também uma cabaça e uma faca afiada.
A jovem implorava aos Tecolotes:
“Não me tirem a vida. Acreditem em mim: ao passar junto do arbusto onde estava a cabeça de Jun Junaipu, a caveira lançou-me um jacto de saliva na palma da mão, e não aconteceu mais nada”.

“Bem queríamos poupar-te a vida”, disseram eles, “mas que havemos de levar na cabaça aos Senhores? Tu sabes o que nos foi ordenado: que te sacrificássemos e arrancássemos o coração”.

Saiu um líquido vermelho como sangue. Ao ser recolhido na cabaça coagulou-se e fez-se uma bola parecida com um coração.
Os mensageiros levaram aos Senhores aquele coágulo em vez do coração da donzela Xquic e esta dirigiu-se para Ulew, a Terra.

Os Tecolotes voltaram a Ulew, a Terra, deixando enganados os Senhores do Inferno, os Ajawab de Xibalbá.
Xmucané, avó de Jun Batz e Jun Chowen, estava em sua casa quando chegou a donzela Xquic e lhe disse:
“De onde vens tu? Meus filhos morreram, mas se em verdade és minha nora, vai à milpa (milheiral) dos meus netos e traz este saco cheio de milho”

“Este sinal basta-me: és minha nora”.
Jun Batz e Jun Chowen não gostavam deles. Davam-lhes maus tratos. Também aborreciam a avó Xmucané.
Todos os dias os jovens tinham de trazer pássaros, caçados com as suas fundas e zarabatanas. Os irmãos comia-nos e não lhes davam nada.
Certo dia aconteceu chegarem os rapazes de mãos vazias: não traziam nem um pássaro. A avó ralhou-lhes, mas eles disseram:

Ao amanhecer, chegaram junto a uma árvore grande, sobrevoada por grande multidão de pássaros. Caçaram muitos com as zarabatanas. Depois Jun Batz e Jun Chowen treparam à árvore, mas o tronco engrossou de tal maneira que já não puderam descer. Os irmãos então disseram-lhes:
“Atai as vossas faixas pela barriga, passai-lhes as extremidades para trás, por entre as pernas, e deixai-vos cair.”
Assim fizeram. As faixas transformaram-se em caudas e eles em macacos.
“Senhora, que terá acontecido a nossos irmãos? Mudaram de feições e transformaram-se em animais. Vamos tentar atraí-los, mas em caso algum poderá rir-se quando os vir.”
Saíram para o monte e começaram a tocar as flautas e tambores e a cantar a moda de Junaipu Coy, o Macaco de Junaipu. Atraídos pela música, Jun Batz e Jun Chowen vieram bailando ao som dos instrumentos.

Junaipu e Xabalamqué voltaram a atrair os irmãos com o canto e as flautas, mas a velha, vendo-lhes a barriga e as caudas, tornou a rir-se e eles voltaram outra vez para o monte.