Um grupo de homens santos tinha-se congregado à volta de um venerável ermita, Vyãsa, que vivia isolado na floresta. "Tu compreendes a ordem eterna divina", disseram-lhe, "revela-nos, pois, os segredos da Mãyã de Visnu".
"Quem pode compreender a Mãyã do deus supremo, senão ele próprio? A Mãyã de Visnu lança o seu encanto sobre todos nós. A Mãyã de Visnu é o nosso sonho colectivo. Posso apenas contar-vos uma história que nos chega de outros tempos, sob o efeito que essa Mãyã produziu, num caso particularmente instrutivo."
Os visitantes estavam ansiosos por ouvir a história. Vyãsa começou:
"Era uma vez um jovem príncipe chamado Kãmadamana, Domador de Desejos, que, agindo de acordo com o espírito do deu nome, vivia num ascetismo dos mais austeros. Mas o seu pai, desejoso que ele se casasse, falou-lhe uma vez nestes seguintes termos: "Kãmadamana, meu filho, que se passa contigo? Porque não tratas de encontrar uma esposa? O casamento proporciona o cumprimento de todos os desejos de um homem e a prossecução da felicidade completa. As mulheres são a raiz mesma da felicidade e do bem-estar. Vai, portanto, e casa-te, meu querido filho".
"O jovem ficou silencioso, por respeito ao seu pai. Mas quando o rei insistiu, pressionando-o repetidamente, Kãmadamana respondeu:
"Meu querido pai, eu atenho-me à linha de conduta determinada pelo meu nome, foi-me revelado o poder divino de Visnu, que nos sustem e nos mantém enredados, e a todos os seres do mundo".
"O reu guardou silêncio por um breve momento para meditar sobre a situação, e desviou habilmente a sua argumentação do apelo ao prazer pessoal para o apelo ao dever. Um homem deve casar, declarou, para assegurar a sua descendência, a fim de evitar que aos espíritos dos seus antepassados, que estavam no reino dos pais, faltassem as oferendas de alimentos por parte dos descendentes e caíssem num sofrimento e desespero indizíveis.
"Meu querido pai", disse o jovem, "eu passei por mais de mil vidas. Sofri a morte e a velhice, muitas centenas de vezes. Conheci a união com esposas, e a sua perda. Existi como erva e como arbusto, como trepadeira e como árvore. Caminhei entre o gado e os predadores. Fui brâmane, homem e mulher, muitas centenas de vezes. Participei na felicidade das mansões celestiaias de Siva; vivi entre os imortais. Na verdade, não há variedade de ser sobre-humano cuja forma não tenha já tomado mais de uma vez; fui demónio, duende, guardião de tesouros celestes, fui também rei entre as serpentes-demónios. De cada vez que o cosmos se dissolveu para ser reabsorvido na essência informe do divino, também eu tornei à existência, para viver outra série de renascimentos. Fui, vezes sem conta, vítima da ilusão da existência, e sempre por ter tomado esposa."
"Deixa que eu te conte algo que me aconteceu durante a minha penúltima encarnação. O meu nome, durante essa existência, era Sutapas, "Aquele cujas Austeridades são Boas", e eu era um asceta. E, graças à minha devoção a Visnu, o deus do universo, mereci as suas graças. Satisfeito por me ver cumprir inúmeros votos, surgiu ante os olhos do meu corpo sentado sobre Garuda, a ave celeste. "Venho conceder-te um favor, disse, tudo aquilo que desejes será teu".
E eu respondi ao senhor do universo: "Se estás satisfeito comigo, deixa-me compreender a tua Mãyã."
"Que farias tu com a compreensão da minha Mãyã?" respondeu o deus. "Conceder-te-ei, em vez disso, uma vida plena, o cumprimento dos teus deveres e tarefas sociais, todas as riquezas, saúde, satisfação e filhos heróicos."
"É disso, precisamente disso, que eu pretendo libertar-me; é isso que quero deixar para trás."
O deus prosseguiu: "Ninguém pode compreender a minha Mãyã. Ninguém alguma vez a compreendeu. Não haverá nunca alguém capaz de desvendar o seu segredo. Há muito, muito tempo, viveu um santo profeta quase divino chamado Nãrada, filho directo do deus Brahmã, e que me era fervorosamnete devotado. Como tu, mereceu as minhas graças, e eu apareci perante ele, exactamente como apareci perante ti. Concedi-lhe um favor e ele solicitou-me o desejo que tu acabaste de formular. Então, apesar de eu o alertar para que não me interrogasse sobre a Mãyã, ele insistiu, tal como tu. E eu disse-lhe: - Mergulha naquelas águas e experimenta o segredo da minha Mãyã. - Nãrada mergulhou no lago. Quando emergiu - emergiu na forma de uma rapariga."
Nãrada saiu da água como Susilã, A Virtuosa, a filha do rei de Benares. Pouco depois, quando estava na flor da sua juventude, o seu pai cedeu-a em casamento ao filho do vizinho rei da Vidarbha. O santo profeta e asceta, sob a forma de uma rapariga, experimentou plenamente os prazeres do amor. Mais tarde, chegado o momento, o velho rei de Vidarbha morreu, e o marido de Susilã sucedeu-lhe no trono. A formosa rainha teve filhos e netos, e foi incomparavelmente feliz. No entanto, ao fim de muitos anos, surgiu uma dissenção entre o marido e o pai de Susilã, dissenção que acabou por se transformar em guerra violenta. Numa única e cruenta batalha morreram muitos dos filhos e netos de Susilã, bem como o seu marido e o seu pai. Quando foi informada do holocausto, saiu em aflição da capital, e dirigiu-se para o campo da batalha, para expressar ali o seu solene lamento. Ordenou que fosse erigida uma pira gigantesca, e ali colocou os cadáveres da sua família - dos seus irmãos, dos seus filhos, seus sobrinho e netos; e depois, lado a lado, os corpos do seu marido e do seu pai, Segurando uma tocha na sua própria mão, ateou fogo à pira, e, quando as chamas se elevaram no ar, gritou: - Meu filho, meu filho! E quando as chamas começaram a crepitar, lançou-se para a fogueira. E, no meio das águas, Susilã ressurgiu - agora, de novo, como o santo Nãrada. E o deus Visnu, segurando a sua mão, ajudou-o a sair das águas cristalinas".
"Quando o deus e o santo atingiram a margem, Visnu perguntou com um sorriso ambíguo: "Quem é esse filho cuja morte choravas?" Nãrada sentiu-se confundido e vexado. O deus continuou: "Esse é o aspecto que tem a minha Mãyã, doloroso, sombrio, desaventurado. Nem Brahmã nascido do lótus, nem Indra ou qualquer outro deus, nem mesmo Siva, podem conceber as suas profundidades sem fundo. Como haverias tu de compreender esse mistério inescrutável?"
"Nãrada pediu que lhe fosse concedida uma fé e devoção perfeitas, e a graça de recordar esta experiência para todo o tempo vindouro. Pediu ainda que o lago no qual ele tinha entrado, como se fosse uma fonte de iniciação, se tornasse um lugar santo de peregrinação, e que as suas águas fossem dotadas com o poder de lavar todos os pecados - graças à secreta e eterna presença, nela, do deus que havia entrado para retirar o santo das suas profundidades mágicas. Visnu concedeu o cumprimento desses piedosos desejos e, no mesmo momento, desapareceu, retirando-se para a sua residencia cósmica no oceano de leite".
"Contei-te esta história", concluiu Visnu, antes de deixar também o asceta Sutapas, "para te fazer ver que este mistério não é conhecível. Se desejares, podes mergulhar também nas águas, e saberás porquê."
Ao que Sutapas (ou o príncipe Kãmadamana na sua penúltima encarnação) mergulhou nas águas do lago. Como Nãrada, também ele emergiu como uma rapariga, e foi assim envolto com as roupagens de uma outra vida.
Mitos e Símbolos na Arte e Civilização Indianas, Heinrich Zimmer