Jornal Le Monde, junho de 1972:
"...Um professor norte-americano da Universidade de Yale afirma, perante uma comissão do Senado encarregada de investigar o tráfico de estupefacientes no Vietname: "...Em 1965, membros da Máfia da Florida fizeram a sua aparição no sueste asiático. Santo Traficante, herdeiro da família fundada por Lucky Luciano, dirigiu-se a Saigão e a Hong Kong a fim de aumentar as exportações de droga para os Estados Unidos..."
Ninguém hoje se espanta ao encontrar no seu jornal uma notícia deste tipo. Para o mundo inteiro, a Máfia, organização norte-americana de crimes de todos os géneros, faz parte da vida quotidiana. Admite-se universalmente que os seus membros dispõem de um poder oculto imenso, que podem, as mais das vezes impunemente, entregar-se às suas criminosas actividades. No fundo, para a maior parte de nós, a Máfia tornou-se numa espécie de flagelo natural, como de tremores de terra ou de tufões se tratasse, contra os quais é preciso lutar, mas sem grande esperança de êxito.
Parece quase sempre impossível que esta enorme empresa criminosa tenha nascido numa das ilhas mais pobres e mais deserdadas do Mediterrâneo: a Sicília. E nem sequer em toda a Sicília, mas apenas na sua parte ocidental, um triângulo de terras ingratas, de colinas peladas, vales ressequidos, orlada de enseadas e de praias torradas pelo sol. Desde há séculos, um povo rude e orgulhoso tenta sobreviver nesta região, numa fome quase permanente, numa luta incessante contra a natureza hostil e também contra uma sucessão ininterrupta de invasões vindas de todos os horizontes.
Um alto dignitário da Igreja explicava assim, há alguns anos, a origem da Máfia:
"Já leram a história desta ilha? Já ouviram falar dos estrangeiros que se sucederam durante mais de vinte séculos para conquistá-la e ocupá-la? Gregos, cartagineses, espanhóis, godos, bizantinos, sarracenos, fenícios, romanos, árabes, berberes, franceses, austríacos, alemães... Isto não cessou. Guerra atrás de guerra, durante dois mil anos. Toda a ocupação provocava inevitavelmente uma resistência. E sempre assim foi na Sicília. Trata-se de um povo orgulhoso, um povo que ama a liberdade. O carácter de um povo determina o de um tal movimento de resistência. É por isso que a Máfia, que sempre foi um movimento de resistência, sempre teve um carácter próprio. é tipicamente siciliano..."
E quando o jornalista que interrogava o prelado lhe falou nos assassinatos cometidos pela Máfia, o homem da Igreja defendeu-a:
"Todo o movimento de resistência pode ter motivos nobres, mas também tem os seus maus aspectos. Sempre assim foi. Até na Sicília. Sim, aprende-se a matar; é preciso punir os traidores. E inspirar um santo pavor aos hesitantes. É preciso dar exemplos. Não se pode tolerar a mais pequena fraqueza. Com uma mão de ferro, há que manter uma disciplina de ferro. E mais ainda: é preciso aprender a mentir, para servir a verdade. O limite entre a resistência e o banditismo é uma linha extremamente vaga, estreita, de contornos caprichosos."
Com o objectivo de darem crédito a esta nobre origem do patriotismo, os mafiosos fazem remontar os inícios da sua associação à Pascoa de 1282, durante a ocupação francesa. Nesse dia teve lugar aquilo que a História chamou de Sangrentas Vésperas Sicilianas. Desde há doze gerações, os Sicilianos transmitem, de pais para filhos, este heróico relato:
"Nessa segunda-feira de Pascoa, os sinos da igreja do Espírito-Santo, em Palermo, chamavam os crentes a Vésperas. Um jovem soldado da Provença, Pierre Druet, aproveitou o momento para tentar violar uma jovem siciliana no portal da igreja. A jovem gritou desesperadamente, por socorro. Alguns transeuntes acorreram ao local e lançaram-se sobre Druet. Então, bruscamente, tudo, na cidade e nos seus arredores explodiu: o ódio, o desespero, o azedume acumulado durante dezasseis anos de miséria. Ninguém sabe quantos morreram, nesse dia e no seguinte. Claro que os franceses se defenderam, mas os homens, as mulheres, e até as crianças de Palermo, lançaram-se em hordas selvagens sobre os invasores. Retalharam-nos com as suas temíveis facas. Estrangularam-nos. Destroçaram os cadáveres dos franceses. Os sinos continuaram a tocar, solenemente, pesadamente, como se quisessem santificar aquela orgia de sangue. Os primeiros assassínios foram espontâneos, mas não tardou a verificar-se que havia uma organização que não queria que o furor se aplacasse. Durante duas vezes vinte e quatro horas, matou-se sistematicamente. segundo uma estratégia impiedosa. Havia até um chefe cuja memória todos celebram ainda: João de Procida. Quando os reforços franceses chegaram a Palermo, tiveram de reconquistar a cidade, rua após rua, praça após praça, casa após casa. Nunca ninguém contou os milhares que pereceram durante as Vésperas sicilianas."
A lenda diz também que as Vésperas sicilianas estariam na origem da palavra Máfia. Com efeito, durante toda a revolta, os insurrectos haviam adoptado como grito a seguinte expressão: Morte Ala Francia, Itália Anela, (Morte à França, é o Voto da Itália) cujas iniciais formaram o nome da sociedade secreta.
No entanto, esta etimologia romanceada não convence os historiadores. Ninguém, todavia, pode afirmar que conhece a origem da palavra Máfia. Alguns pensam que mafie, plural de Máfia, designava outrora, muito simplesmente, as rochas de Trapani, na ponte oeste da Sicília. Sabe-se que diversas sociedades secretas gostavam de reunir-se nas grutas dessa região. Os outros pensam encontrar a raiz da palavra Máfia em termos árabes, mahias, por exemplo, que significa gabarola ou fanfarrão, ou magtaa, que significa caverna, ou reduto. Outros ainda pretendem que Máfia deriva da velha palavra francesa Maufe (mau), do florentino maffia (miséria), do grego morphé (beleza, perfeição).
Quanto à verdadeira origem da Máfia, também quanto a ela quase cada historiador tem a sua própria explicação. Alguns fazem remontar as primeiras manifestações a mais ou menos 1670. Sob um outro nome, teria sido um organismo de ligação de resistência, de bandos e de fratellanze (confrarias).
O que é certo é que se criou, em Palermo, em 1870, uma sociedade secreta, a Beati Paoli, que teria em breve uma sucursal em Messina. É um movimento de aristocratas, de "nobres esclarecidos" que lutam pela libertação e pela independência da Sicília. Como mais tarde aconteceria com a Máfia, inventa para si mesma um cerimonial misterioso. Os seus membros reúnem-se em segredo, numa gruta perto da igreja de San Rocco. O primeiro objectivo é a defesa da aristocracia siciliana pois, para ela, o que é bom para os nobres é proveitoso para todo o povo siciliano. Encontra-se aqui uma filosofia que será a da Máfia: o que é bom para a Máfia, beneficia todos os sicilianos.
A própria palavra Máfia só aparece na linguagem corrente em 1863, exactamente. Encontramos-la impressa pela primeira vez no título de uma peça de teatro, I Maffiusi de la Vicaria, que relata alguns episódios da vida dos detidos da prisão de Palermo. Os mafiosos são os membros de uma espécie de sociedade secreta de bandidos que tentam reger a vida no interior das masmorras. Para o autor, trata-se, nem mais nem menos, de uma associação de patifes, sem qualquer ideal de libertação ou de resistência.
É com efeito por volta de 1860 que se instaura, no oeste da Sicília, especialmente em Palermo, e nos campos circundantes, o poder da Máfia. Atravessa uma época muito conturbada da história da Itália. Os seis estados em que ainda se divide a península cambaleiam sob os golpes do Risorgimiento - isto é, do vasto movimento que tende para a unidade nacional, cujos heróis são Mazzini, Cavour, e sobretudo o célebre Garibaldi. Este último, à frente dos seus famosos "Mil camisas vermelhas" vai, entre 1860 e 1861, libertar a Sicília do jugo dos Bourbons, que reinam em Nápoles. Depois, a expedição atravessará o estreito de Messina, percorrerá a Calábria e chegará a Nápoles, onde Garibaldi fará, após inúmeras peripécias, acto de submissão ao rei Victor Emanuel, do Piemonte.
A Máfia, naturalmente, tomará parte nas lutas garibaldinas na Sicília. Mas, sob a capa de ajudar os libertadores, estes bandos entregar-se-ão mais a actos de banditismo do que a verdadeiras acções militares. Isto permitir-lhe-á, todavia, afirmar a sua autoridade sobre os oeste da Sicília, pois, curiosamente, nunca esta sociedade secreta conseguirá implantar-se de facto na metade leste da grande ilha.
É preciso dizer que a região da Concha de Ouro (os campos em torno de Palermo), presta-se, pela sua topografia e pelos seus costumes, ao estabelecimento de um regime de terror que é, de facto, o da Máfia. Esta região, a mais fértil da Sicília, sempre foi, de resto, cenário de crimes misteriosos, de vinganças sangrentas e de manifestações espectaculares de orgulho dos insulares.
A maior parte desta região está dividida em propriedades pertencentes a fazendeiros ou a aristocratas residentes na cidade, e até muita vezes no continente. a grande maioria destes arrendam as suas terras, contentando-se em receber rendas anuais.
Os seus rendeiros têm necessidade, para poderem vigiar as suas terras que cultivam, de guardas, pois o banditismo e o latrocínio pululam na região. Estes guardas são muito numerosos na Concha de Ouro e constituem uma espécie de confraria muito fechada cujos membros, entre si, se chamam compadres, se solidarizarem uns com os outros. Na Sicília, o título "compadre" é uma coisa sagrada. A solidariedade, entre eles, é maior do que entre os membros de uma mesma família.
Um destes guardas da quinta impõe-se, por vezes, aos seus compadres. É admirado se esteve na prisão, sobretudo se isto se ficou a dever a uma rixa da qual tenha saído vencedor, de um modo sangrento. Quando este indivíduo se vê chamado de compadre por um homem político, um médico ou um advogado, torna-se, aos olhos dos amigos, um verdadeiro super-homem, é rapidamente reconhecido chefe indiscutido da Máfia de toda a região. Torna-se de um certo modo rei, está ao corrente de tudo, e aqueles que voluntariamente lhe deram aquele poder vêem-se obrigados a obedecer-lhe cegamente, sob pena de morte.
O ódio tradicional do siciliano pela justiça oficial e pela Polícia, leva-o a recorrer, em caso de litígio, ao chefe da Máfia local, que assim se torna o árbitro supremo.
De qualquer modo, a regra principal de toda a organização da Máfia e das suas subordinadas é a grande lei do silêncio siciliano, a omerta. Aqui reside o próprio fundamento de todo o poder da organização. A traição, o testemunho, o simples falatório, sempre foram considerados na Sicília crimes imperdoáveis. E só têm um castigo: a morte.
No centro-oeste da Sicília, onde as grandes propriedades, os latifúndios, são ainda mais vastos, o sistema de guardas permite aos mafiosos enriqueceram ainda mais rapidamente. Criaram, para proteger as propriedades senhoriais, uma verdadeira polícia privada, que cobre toda a região. São os campieri, cujos bandos mantém a ordem em toda a zona. Os proprietários dos latifúndios concedem-lhes benefícios de todos os géneros: cavalos, alojamento gratuito, forragem para os animais, trigo à discrição, salário elevado, tudo para se assegurarem da sua fidelidade.
No entanto, os campieri tiram a maior parte dos seus lucros da prática de um delito muito especial que tem, na Sicília, o nome de abigeato. Consiste em fazer roubar, durante a noite, por mafiosos amigos, numa quinta vizinha, um número mais ou menos importante de animais, que são vendidos por ladrões a compadres ou nas feiras. Os lucros desta operação são escrupulosamente divididos por todos os cúmplices.
Acontece por vezes que o proprietário cujo rebanho acaba por sofrer a razzia se dirige ao chefe mafioso local para obter a restituição dos seus bens, Este, que é cúmplice dos ladrões, propõe então ao proprietário que pague uma espécie de resgate pelos seus animais. Este último sabe que lhe resta concordar ou sofrer um castigo por ter sido roubado, castigo que regra geral é a morte.
Também nas cidades se implanta a Máfia. Recruta, sobretudo de início, entre os ricottari,os rapazes maus do meio. Entre eles contam-se muitos filhos de família desviados, vivendo em parte dos encantos das suas companheiras e tirando a maior fatia dos seus lucros da chantagem e da trapacice.
Protegidos, sabem-se ao abrigo de qualquer perseguição, graças ao princípio da omerta. Não precisam, portanto, de esconder-se, e passeiam-se pelas ruas armados de punhais e de revólveres, ou até de carabinas, sem que a Policia ouse intervir. Os ricottari apoiam-se uns aos outros ao ponto de se deixarem matar no lugar dos amigos. Mas este género de vida dura pouco. Passados os trinta anos, o ricottaro torna-se um verdadeiro mafioso, membro da grande organização. Possui então um grande prestigio moral, que lhe permite dominar todo os seu bairro.
A casa de um chefe mafioso assemelha-se estranhamente à de um aristocrata da antiga Roma. Uma longa fila de cientes e de demandistas forma-se diante da porta, logo a partir das primeiras horas do dia. Quando ele aparece, de todos os lados chovem elogios, cumprimentos e pedidos. O chefe escuta tudo isto, adoptando um ar de grande superioridade. Regra geral, de entre as causas que lhe suplicam que solucione escolhe aquelas susceptíveis de serem mais difíceis. Um dos seus trabalhos mais importantes consiste em influenciar a justiça de modo a ilibar os seus clientes. E para o conseguir nunca hesita em recorrer à intimidação, à chantagem, à ameaça de morte. Aqueles que ele ajuda sentem-se obrigados a ajudá-lo por sua vez, quando ele lhes pede um favor, dos quais o mais pequeno é geralmente liquidar com um tiro de espingarda um devedor recalcitrante ou um homem que se tenha recusado a aceitar a sua arbitragem.
Assim, pouco a pouco, nos fins do séc. XIX, a sombra da Máfia, da Honorável Sociedade, estende-se sobre uma grande parte da Sicília, primeiro constituída por bandos separados e muitas vezes rivais, organizando-se depois numa sociedade de hierarquia, leis e costumes bem definidos.
Naturalmente, à medida que a Máfia ganha importância, sente a necessidade de ocupar-se da política. Já em 1901, um historiador escrevia, a propósito da Sicília:
"Onde quer que a Máfia seja forte, nenhum candidato pode ser eleito, no escalão comunal ou nacional, sem o apoio da sociedade secreta. E só obtém esse apoio no caso de garantir a sua ajuda à Máfia, uma vez eleito. É por isso que a Máfia tem os seus protectores, na Câmara e no Senado, e é por isso que o governo tem contactos com os mafiosos mais importantes. Os bandos da Máfia podem operar livremente. Recebem licenças de porte de arma que são recusadas a honestos cidadãos. A Máfia sabe que nem o governo nem o Parlamento se oporão às suas operações de chantagem desde que estas se façam com um mínimo de tacto. Em troca, a Máfia barra a passagem, nas eleições seguintes, a uma eventual oposição. Esta mão invisível paralisa a política de Roma. Até a Polícia suporta o fardo tradicional dos funcionários, que já suportava sob os Bourbons: tolera o crime, desde que ele não provoque um escândalo público. Um polícia ou um juiz que tome um pouco mais a sério as suas funções, não tardará a aperceber-se que alienou a favor de seus superiores..."
O verdadeiro organizador da Máfia moderna, aquele que lhe deu o seu aspecto definitivo, foi Don Vito Cascio Ferro, nascido em Bisaquino, na província de Palermo. A partir do início do séc. XX, exercerá sobre toda a Máfia uma autoridade absoluta.
Sob seu reinado, a Máfia chegou ao ponto de possuir uma frota capaz de expedir para toda a Tunísia o gado roubado e de transportar para o alto mar os criminosos perseguidos pela Polícia, que depois eram confiados a navios com destino à América.
Foram estes colonos singulares que fundaram nos Estados Unidos, em St Louis, Chicago, Kansas City e New Jersey, a organização criminosa Mão Negra.
Don Vito é igualmente notável na arte de receber u pizzu. U pizzu, no colorido dialecto siciliano, significa o bico de uma pequena ave, molhar o bico: fari vagnari u pizzu, significa receber um copo de vinho.
Não tarda que todas as receitas sejam taxadas pela Máfia. Não só os comerciantes lhe pagam uma dízima para evitarem que as suas mercadorias sejam deterioradas de mil maneiras diferentes, como Don Vito impõe o sistema de "praça garantida"; em qualquer praça ocupada por um "amigo", não é consentida qualquer espécie de concorrência, e o beneficiário do monopólio é convidado a pagar uma comissão à Máfia. Por outro lado, a criminalidade é transformada em negócio: sempre que é cometido um crime, Don Vito oferece a mediação. Deste modo, o ladrão nada tem a temer, a vítima paga para recuperar os seus bens, e a Máfia recebe a sua parte. Finalmente, todos e cada um têm de pagar à Máfia uma renda fixa e preventiva, a fim de poder viver tranquilamente. Até os apaixonados, se querem passear, como na época é costume, sob a janela da amada, têm de pagar "a cannila", isto é, uma contribuição simbólica para custear a vela que um membro da Máfia é suposto ter segurado para alumiá-los.
Muitas pessoas, sobretudo na província de Palermo, recordam-se de Don Vito: alto, distinto, de porte aristocrático, usando uma comprida e venerável barba. Ninguém teria suspeitado o que ele seria, na verdade. O prestígio que goza é inimaginável; os alcaides das aldeias beijavam-lhes as mãos; os personagens mais distintos veneravam-no.
A Máfia, sob o controle de Don Vito, organiza-se e estrutura-se. Adquire, na Sicília, a forma definitiva que conservará, mais tarde, nos Estados Unidos. A célula principal é a família. A família cobre geralmente uma aldeia, ou um pequeno grupo de aldeias vizinhas. Os membros são frequentemente parentes, irmãos, primos, filhos, pais, ou, pelo menos, pessoas que vivem perto umas das outras. As famílias reúnem-se em grupos denominados "cosche". A Cosca (que significa cocha, ou alcachofra), consagra a preponderância da família mais poderosa sobre as outras famílias que dela fazem parte. Diz-se então que as outras famílias a rodeiam, isto é, a protegem e lhe devem assistência, como as folhas da alcachofra rodeiam e protegem o seu coração.
Existem igualmente "cosches" especializados numa mesma indústria ou em várias indústrias complementares. Estes interesses comuns permitem e esses "cosches" reunirem-se em consortiere (associação). Todo este conjunto forma aquilo que se convencionou chamar a Onorata Secreta, isto é, a Máfia.
Don Vito mantém a preponderância da sua terra nata (a Sicília natal) sobre as "cosches" norte-americanas fundadas pelos emigrados sicilianos segundo o modesto insular. Não hesita em enviar aos Estados Unidos pisciotti sicilianos para chamar ao bom caminho os mafiosos emigrados que mostrem tendência para fugir à autoridade da terra nata. É curioso constatar que foram necessários mais de vinte anos após a segunda guerra mundial para que a Máfia americana se afirmasse em relação à Máfia siciliana, conservando todavia face a esta última as fórmulas do respeito tradicional.
A Máfia utiliza igualmente uma linguagem especial, a que os seus membros recorrem quando querem tornar as suas conversas incompreensíveis para os não iniciados. Muitas vezes, a palavra utilizada não tem a sua significação própria, mas uma outra, diferente, por vezes simbólica pela imagem que evoca. Esta linguagem é acompanhada por mímicas, por movimentos das mãos, da cabeça, dos olhos, dos ombros, do ventre, dos pés. Os mafiosos são capazes de fazer todo um discurso sem abrirem uma única vez a boca. São capazes de conversar à distância, num café, por exemplo, sem que ninguém suspeite sequer que se conhecem. É ainda possível, mesmo nos nossos dias, tratar de um assunto de drogas sob os olhos de um polícia do Serviço norte-americano de Narcóticos. A mímica mafiosa possui vários dialectos segundo as regiões de origem daqueles que a utilizem. Viu-se o caso, no tribunal de Palermo, de um chefe de cosca acusado de assassínio, ditar todas as suas disposições às testemunhas que eram chamadas, sem que nenhum magistrado, advogado ou polícia tenha dado por isso.
Conhecem-se também um certo número de sinais discretos que têm para os mafiosos um sentido preciso. Por exemplo, um chapéu usado de um certo modo pode ter significado. Inclinado para a esquerda: vejo-te daqui a pouco; inclinado para trás: socorro. Tudo isto sem exageros, de um modo imperceptível, ou quase, para quem não pertence à Máfia.
E como se passa a ser membro da sociedade?
Não é de qualquer maneira, dir-lhe-ão na Sicília.
"É-se escolhido; é-se observado cuidadosamente durante anos antes que seja chamado a prestar juramento."
O rito é tão antigo como a própria Máfia. Certo dia, o jovem que está prestes a entrar para um pequeno grupo de mafiosos é apresentado, pelo capo da sua aldeia ou do seu cantão, ao Conselho dos Anciãos, que é um conselho secreto. A sala onde se desenrola a cerimónia recorda verdadeiramente um templo. Sobre uma mesa comprida e baixa repousa um ícone, entre duas velas acesas. Como para um baptismo, o futuro Mafioso é acompanhado por dois padrinhos, velhos mafiosos que propuseram a sua candidatura. Espetam-lhes as mãos com compridas e pontiagudas agulhas, até lhas transformarem em duas bolas ensanguentadas. Então, o candidato pousa as mãos vermelhas de sangue no ícone e pronuncia a celebre fórmula:
"Juro ante Deus que ajudarei os meus irmãos que estiverem em dificuldades, mesmo com risco para a minha vida. Juro que vingarei o mal feito aos meus irmãos, como se me tivesse sido feito a mim mesmo. Juro que nunca pedirei auxílio à Polícia ou a qualquer autoridade civil. Juro que conservarei secretos, em quaisquer circunstâncias, os nomes dos meus irmãos. Juro que executarei todas as ordens do Conselho dos Antigos, sem perguntar os porquês. Aceito que todo o irmão que desobedeça a esta lei seja punido com a morte. Em nome do santo cuja imagem é banhada pelo meu sangue, juro tudo isto. Ámen."
É verosímil que todos os duros da Máfia actual, que não poupam nada nem ninguém, nem sempre se dêem ao trabalho de cobrir um ícone com o seu próprio sangue aquando do rito sagrado de admissão. No entanto, no decurso de uma caçada notavelmente discreta que fez, durante o verão de 1963, a alguns mafiosos sem importância, a Policia siciliana descobriu, na cave mais ou menos transformada em templo de uma casa de Villabete a que passava revista, vários ícones cobertos por uma crosta de sangue. Era evidente que tinham servido, pouco tempo antes, a um rito de iniciação. Segundo os dados do Departamento do Tesouro norte-americano, a Máfia dos Estados Unidos simplificou um pouco a fórmula do juramento, e, acabada a cerimónia, queima o ícone num fogo simbólico. Fundamentalmente, no entanto, é sempre o mesmo juramento tradicional:
"Juro ser fiel à Máfia, como a Máfia me assegura a sua fidelidade. Tal como o ícone e as minhas gotas de sangue ardem neste momento, juro estar pronto a oferecer o meu sangue à Máfia quando chegar o momento em que as minhas cinzas e o meu sangue deverão voltar àquilo de onde saíram."
Fonte: História do Ocultismo, Seitas e Sociedades Secretas, Bernard Michal, Jean Renald