30 de dez. de 2018

Viagem, Eugénio de Andrade





   Iremos juntos, separados,
   as palavras mordidas uma a uma,
   taciturnas, cintilantes,
   - ó meu amor, constelação de bruma,
   ombro dos meus braços hesitantes.
   Esquecidos, lembrados, repetidos,
   na boca dos amantes que se beijam
   no alto dos navios;
   desfeitos ambos, ambos inteiros,
   no rasto dos peixes luminosos,
   afogados na voz dos marinheiros.

Sorriso, Eugénio de Andrade



Creio que foi o sorriso, 
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz 
lá dentro, apetecia 
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.





11 de dez. de 2018

Pablo Neruda, Ode ao Inverno / Ode à Pobreza / Ode à Simplicidade




Ode ao Inverno

Inverno, algo entre nós 
existe,
colinas sob a chuva,
galopes
no vento,
janelas
onde se amontoaram as tuas vestes,
a tua camisa de ferro,
as tuas calças molhadas,
o teu cinturão de couro transparente.
inverno,
para alguns
és neblina
sobre as represas,
clamorosa clâmide,
rosa branca,
corola de neve,
mas para mim, Inverno,
és
um cavalo,
sobe-te do focinho a névoa,
gotas de chuva caem-te 
da cauda,
rajadas eléctricas
são as tuas crinas,
galopas
desenfreadamente
salpicando de lama
o viandante,
olhamos
e já passaste,
não te vemos a cara,
não sabemos 
se são de água de mar
ou de cordilheira
os teus olhos, passaste
como a cabeleira
de um relâmpago,
não ficou ilesa uma árvore sequer,
as folhas 
amontoaram-se 
no solo,
os ninhos
ficaram esgarçados
no cimo das copas,
enquanto tu galopavas
na luz moribunda do planeta.
És frio, inverno,
e os teus cachos
de neve negra e água
no telhado
perfuram
as casas
como agulhas,
ferem como facas oxidadas.
Nada te detém.
Começam
os ataques de tosse, saem as crianças
com os sapatos encharcados,
nas camas a febre
é como
a vela dum navio
incendiada,
a cidade dos pobres
navegando para a morte,
a mina
escorregadia,
a batalha do vento.
Desde então,
inverno, passei a conhecer
a tua esburacada roupa
e o silvo
da tua buzina entre as araucárias
quando clamas
e choras,
cavaca na chuva louca,
desatado trovão
ou coração de neve.
O homem
na areia agigantou-se,
cobriu-se de tormenta,
o sal e o sol vestiram
de seda salpicada
o corpo da nova nadadora.
Mas
quando chega o inverno
o homem
transforma-se num pequeno novelo
que caminha
com funerário guarda-chuva,
cobre-se
com asas impermeáveis,
torna-se húmido
e mole
como uma papa, refugia-se
nas igrejas,
ou lê notícias necrológicas.
Entretanto,
em cima,
entre os carvalhos,
na cabeça das nevadas,
no litoral,
tu reinas 
com a tua espada,
com o teu gelado violino,
com as plumas que esvoaçam
do teu peito indomável.
Qualquer dia
encontramo-nos-emos,
quando
a grandeza
da tua formosura
não se abater
sobre o homem,
quando
deixares de perfurar
o tecto 
do meu irmão,
quando
puder amparar a mais alta
brancura do teu espaço
sem ser mordido,
passarei saudando
a tua majestade desatada.
Descobrirei a cabeça
sob a mesma chuva
da minha infância
porque confiarei 
nas tuas águas:
elas lavam o mudo,
arrastam os papéis,
trituram a pequena
imundice dos dias,
lavam
o rosto da terra,
as tuas mãos lavam,
e descem até ao fundo
lá onde
a primavera
dorme.
Tu fá-la estremecer, feres
as suas pernas transparentes,
desperta-la, molha-la,
começa a trabalhar,
varre as folhas mortas,
reúne a sua fragrante
mercadoria,
sobe as escadas
das árvores
e de repente vemo-la
no cimo
com o seu novo vestido
e os seus antigos olhos verdes.





Ode à Pobreza

Quando eu nasci,
seguiste-me,
pobreza,
olhavas-me
através
das tábuas carcomidas
pelo agreste inverno.
Subitamente
eram os teus olhos
que espreitavam pelas frinchas.
As goteiras,
de noite,
repetiam
o teu nome e apelido
ou às vezes
o saleiro quebrado,
o fato roto,
os sapatos descosidos,
advertiam-me.
Ali estavas
espiando-me
com os teus dentes de caruncho,
com os teus olhos de pântano,
com a tua língua cinzenta
que corrompe
a roupa, a madeira,
os ossos e o sangue,
ali estavas,
procurando-me,
seguindo-me 
pelas ruas
desde o meu nascimento.
Quando aluguei um pequeno
quarto, nos subúrbios,
sentada numa cadeira
esperava por mim
e ao desdobrar os lençóis
num obscuro hotel,
quando adolescente, 
da rosa nua
não foi a sua fragrância o que senti,
mas somente o frio silvo
da tua boca.
Pobreza,
seguiste-me,
por quarteis e hospitais,
em tempo de paz e de guerra.
Quando adoeci bateram
à porta:
não era o médico, era
uma vez mais a pobreza que chegava.
Vi como atiravas os móveis
para a rua:
os homens
deixavam-nos cair como se fossem pedregulhos.
Tu, com execrável amor,
ias fazendo
dum amontoado de solitárias coisas
no meio da rua e à chuva,
um desmantelado trono
e olhando os pobres
levavas-me
o último prato transformando-o em diadema.
Agora,
sigo-te,
pobreza.
E assim foste implacável,
implacável sou.
Junto
de cada pobre
encontrar-me-ão cantando,
debaixo
de cada lençol
de sombrio hospital
no meu canto encontrarás.
Sigo-te,
pobreza,
vigio-te,
cerco-te,
disparo sobre ti,
isolo-te,
corto-te as unhas rentes,
quebro-te 
os dentes que te restam.
Estou
 em todas as partes:
no oceano com os pescadores,
na mina 
os homens 
ao limparem a fronte,
enxugando-se do negro suor,
encontram 
os meus poemas.
Todos os dias saio
com a operária têxtil.
Tenho as mãos brancas
de dar o pão nas padarias.
Estejas onde estiveres,
pobreza,
o meu canto
estará cantando,
a minha vida
estará vivendo,
o meu sangue
estará lutando.
Arriarei
as tuas pálidas bandeiras
onde quer que se levantem.
Outrora outros poetas
te chamaram 
santa,
veneraram o teu manto, 
alimentaram-se de fumo
e desapareceram.
Mas
eu desafio-te,
com os duros versos te machuco o rosto,
embarco-te e desterro-te.
Eu e muitos mais,
expulsar-te-emos
da terra para a lua
onde ficarás fria
e encharcada
olhando com um só olho
o pão e os frutos
que cobrirão a terra 
de amanhã.




Ode à Simplicidade

Diz-me, simplicidade,
andaste sempre comigo,
ou volto a encontrar-te
na minha cadeira, sentada?
Agora,
porque estou contigo
não me aceitam,
olham-me de esguelha
e perguntam-me quem é essa
ruiva.
O mundo,
quando nos encontrávamos,
e nos reconhecíamos,
enchia-se de tontos
tenebrosos,
de filhos de fruta tão repletos 
de palavras
como os dicionários,
tão cheios de vento
como uma tripa que nos quer pregar
uma partida
e agora que chegávamos
depois de tantas viagens
desafinamos o tom
da poesia.
Como é terrível o que nos acontece, simplicidade:
nos salões não nos querem receber,
os cafés estão a abarrotar
dos mais bizarros 
pederastas,
olhamos um para o outro,
a nossa presença não é grata.
Então
atravessamos os areais,
os bosques,
de noite
a escuridão é nova,
recém lavadas ardem
as estrelas, o céu
é um campo de trevo
túrgido, sacudido
pelo seu sombrio 
sangue.
De manhã
vamos 
à padaria,
o pão é morno como um seio,
o mundo cheira a esta frescura
de pão recém-cozido.
Romero, Ruíz, Nemésio,
Rojas, Manuel, António,
padeiros todos eles. 
Que parecidos são
o pão e o padeiro,
que simples é a terra
de manhã,
durante a tarde mais ainda,
e pela noite
transparente.
Por isso
procuro
nomes
entre a erva,
como te chamas?
Pergunto eu 
a uma corola
que subitamente
colada ao solo entre as humildes pedras
ardeu como um relâmpago.
E assim, simplicidade, vamos 
conhecendo
os escondidos seres, o secreto
valor de outros metais,
olhando a formosura das folhas,
conversando com homens e mulheres
que só por isso serem
os torna insignes,
e onde quer que estejas, simplicidade,
o teu encanto me arrebata.
Parto contigo,
entrego-me à tua torrente
de água clara.
E então protestam:
Quem é essa
que anda com o poeta?
É claro que não queremos nada
com essa provinciana.
Mas se é ar, é ela
o céu que eu respiro.
Eu não a conhecia ou dela me lembrava.
Se me viram
antes
andar com misteriosas
odaliscas,
não passou isso de tenebrosos
deslizes.
Agora, 
meu amor,
água,
ternura,
luminosa luz ou sombra,
transparente,
simplicidade,
comigo vais, ajudando-me a nascer,
ensinando-me 
novamente a cantar,
verdade, virtude, vertente, 
vitória cristalina.