3 de jun. de 2012

Excerto de "Sidarta" de Hermann Hesse

Sidarta vagueou pelo bosque, entregue aos seus pensamentos.
Foi nesse momento que Gotama, o Augusto, cruzou-lhe o caminho. O jovem saudou-o reverentemente e quando notou o olhar bondoso, sereno, do Buda, encheu-se de coragem. Pediu ao Venerável que lhe desse licença para falar. Com um aceno silencioso, o Augusto anuiu.
E Sidarta começou:
— Ontem, ó Majestoso, coube-me em sorte ouvir a tua maravilhosa doutrina. Junto com meu amigo, vim de longe, a fim de conhecê-la. E agora meu amigo aderiu aos teus discípulos, abrigando-se na tua proximidade. Eu, porém, hei de reiniciar a minha peregrinação.
— À vontade — tornou o Venerável, cortêsmente.
— Minha palavras são excessivamente audaciosas — continuou Sidarta — mas não quero separar-me do Augusto, sem ter-lhe comunicado, com toda a franqueza, os meus pensamentos. Consentiria o Venerável em prestar-me atenção por mais um instante?
Silencioso, o Buda deu anuência.
— Há uma coisa, ó Venerabilíssimo, — prosseguiu Sidarta— que despertou em mim especial admiração, logo que conheci a tua doutrina. Nessa doutrina, tudo fica completamente claro. Tudo é demonstrado. Tu mostras o mundo sob a forma de uma corrente perfeita, jamais e nenhures interrompida, corrente eterna, constituída de causas e efeitos. Nunca, em parte alguma, isso se percebeu com tamanha nitidez, nem tampouco foi exposto tão irrefutavelmente. Realmente, os corações de todos os brâmanes deverão vibrar de alegria, quando seus olhos enxergarem o cosmos através de tua doutrina, esse cosmso que forma um conjunto inteiriço, sem lacunas, límpido como cristal, não dependente nem do acaso nem dos deuses. Se o mundo é bom ou mau, se a vida em seus confins é sofrimento ou prazer, essa pergunta pode permanecer sem resposta. Pode ser que aquilo tenha pouca importância. Mas a unidade do mundo, o nexo existente entre todos os acontecimentos, o fato de todas as coisas, tanto as grandes como as pequenas, estarem incluídas no mesmo decorrer, na mesma lei das causas, do devir e do morrer — tudo isso, ó Augusto, ressalta luminosamente na tua excelsa doutrina. Mas, nessa mesma doutrina, há um único lugar em que tal unidade e lógica das coisas estejam interrompidas. Por uma minúscula lacuna penetra na unidade desse mundo um elemento estranho, novo, que antes não existiu, que não pode ser mostrado nem comprovado. Refiro-me à tua tese acerca da possibilidade de superarmos o mundo e alcançarmos a redenção. Ora, essa pequeníssima lacuna, essa brechazinha, basta para destruir e liquidar toda a unidade e eternidade da lei cósmica. Perdoa-me
a audácia de ter feito esta objeção.
Silencioso, impassível, escutara Gotama. A seguir falou o Homem Perfeito, na sua voz delicada e clara:
— Ouviste a doutrina, ó filho de brãmane e honra-te teres meditado profundamente a seu respeito. Enconíraste nela uma lacuna, uma falha. Continua a refletir sobre ela. Permite-me, porém, ó moço ávido de saber, que te advirta do emaranhamento das opiniões e da disputa acerca das palavras. Pouco valor têm as opiniões, sejam elas lindas ou feias, sensatas ou estúpidas. Qualquer um pode agarrar-se a elas ou também refutá-las. Mas a doutrina que ouviste da minha boca não é nenhuma opinião e não tem o propósito de explicar o mundo a pessoas ávidas de saber. Seu desígnio é a redenção do sofrimento. O que Gotama ensina é ela e nada mais.
— Não tenhas rancor contra ,ním, ó Augusto — disse o jovem. — Não me dirigi a ti para discutir contigo, para provocar uma disputa em torno de palavras. Deveras tens razão: pouco valor têm as opiniões. Mas, com tua licença, direi mais uma coisa: não duvidei de ti nenhum instante. Não duvidei em absoluto de que és o Buda, de que alcançaste o objetivo supremo, a cuja busca se encaminharam tantos milhares de brâmanes e filhos de brâmanes. Obíiveste a redenção da morte! Ela te coube em virtude do teu próprio empenho, pelo método que é teu, pelo pensamento, pela meditação, pelo conhecimento, pela iluminação. Não a conseguisíe através da doutrina! E — eis o
meu raciocínio, ó Augusto — ninguém chega à redenção mediante a doutrina! A pessoa .alguma, ó Venerável, poderás comunicar e revelar por meio de palavras ou ensinamentos o que se deu contigo na hora da tua iluminação! Ela contém muita coisa, a doutrina do esclarecido Buda. A numerosas pessoas indica o caminho para uma vida honesta, afastada do Mal. Mas há uma única coisa que não se acha nessa doutrina, por mais clara e veneranda que ela seja. Não nos é dado saber o segredo daquela experiência que teve o próprio Augusto, apenas ele entre centenas de milhares de homens. São esses os pensamentos e as percepções que me vieram quando ouvi a doutrina. Por isso, hei de prosseguir na minha peregrinação, não para ir à procura de outra doutrina melhor, já que sei muito bem que não há nenhuma, senão para separar-me de quaisquer doutrinas e mestres, a fim de que possa alcançar sozinho o meu destino ou então morrer. Contudo me lembrarei freqüentemente deste dia, ó Sublime, e desta hora, na qual um santo se deparou aos
meus olhos.
Serenamente, o Buda fitava o chão. Plàcidamente, com perfeita impassibilidade, luzia o rosto mescrutável.
— Oxalá — disse lentamente o Venerável — que teus pensamentos não sejam erros! Que te seja permitido alcançar o teu destino! Mas, dize-me: viste a multidão de meus samanas, o sem-número de meus irmãos, que se agasalharam na minha doutrina? E achas, ó samana forasteiro, achas realmente que seria melhor para todos eles que abandonassem a doutrina e regressassem à vida do mundo e dos prazeres?
— Longe de mim pensar semelhante coisa — exclamou Sidarta. — Que eles continuem fiéis à tua doutrina e realizem os seus propósitos! Não me cumpre julgar a vida de outrem. Devo opinar, escolher, rejeitar unicamente no que se refere a mim mesmo. Nós, os samanas, procuramos a redenção do eu, ó Augusto. Ora, se eu fosse um dos teus discípulos, ó Venerável, poderia acontecer-me — assim receio — que meu eu só aparentemente, falazmente obtivesse sossego e redenção, mas na realidade continuasse a viver e a crescer, uma vez que eu teria então a tua doutrina, teria o fato de ser teu adepto, teria meu amor a ti, teria a comunidade dos monges e faria de tudo isso o meu eu.
Esboçando um meio-sorriso, Gotama contemplava o forasteiro com inabalável clareza e bondade. A seguir, despedindo-o com um gesto quase imperceptível, disse o Augusto:
— És inteligente, ó samana. Sabes falar inteligentemente, mas, meu amigo, acautela-te contra o excesso de inteligência!
O Buda afastou-se do seu olhar, seu meio-sorriso gravaram-se para sempre na memória de Sidarta.
Nunca vi homem algum que me olhasse e sorrisse assim, que tivesse esse modo de andar e sentar-se pensou o jovem.
— Quem me dera olhar, sorrir, caminhar, manter-me sentado à sua maneira, com esse quê de liberdade, de dignidade, de discrição, de ingenuidade, de franqueza e de mistério! Realmente, assim só pode olhar e caminhar quem tiver penetrado no âmago de sua personalidade. Pois então, também eu me empenharei em penetrar no âmago de minha alma.
Vi um homem — continuou Sidarta nos seus pensamentos — um único homem, diante do qual tivesse de baixar os olhos. Não tenciono baixar os olhos diante de mais ninguém, ninguém! Já não me tentará doutrina alguma, uma vez que a dele não me seduziu.
O Buda privou-me de muita coisa — ponderou Sidarta — Tirou-me algo e ainda mais me deu de presente. Privou-me do amigo, do homem que acreditava em mim e agora crê nele, da pessoa que era minha sombra e passou a ser a sombra de Gotama. E, no entanto, ele me deu Sidarta, deu-me a mim mesmo.



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