Ode à Chuva
Voltou a chuva,
mas não veio do céu
ou do oeste,
voltou da minha infância.
A noite abriu-se, um trovão
comoveu-a, o estrondo
varreu as solidões,
e então
chegou a chuva
da minha infância,
primeiro numa rajada
raivosa,
depois como a cauda
molhada
dum planeta.
A chuva
tic tac mil vezes tic
tac mil
vezes um trenó,
uma vasta pancada
de escuras pétalas
na noite,
subitamente
intensa
crivando
a folhagem
com agulhas,
outras vezes
um manto
tempestuoso
tombando
no silêncio.
A chuva,
mar do céu,
rosa fresca
nua,
voz celeste,
violino negro,
formosura.
Amo-te
desde criança,
não por seres boa,
mas pela tua beleza.
Caminhei
com os sapatos rotos
enquanto os fios
do céu escancarado
se desatavam sobre
a minha cabeça,
traziam-nos
a mim e às raízes,
as mensagens
das alturas,
o húmido oxigénio,
a liberdade do bosque.
Conheço os teus desmandos,
o buraco
no telhado
gotejando
nos quartos
dos pobres.
Ali desmascaras a tua beleza,
és hostil
como uma celestial armadura,
como um punhal de vidro,
transparente.
Ali conheci-te de verdade,
no entanto continuei
apaixonado
por ti.
De noite
fechando os olhos
esperei que caísses
sobre o mundo,
esperei que cantasses
somente para o meu ouvido,
porque o meu coração guardava toda
a germinação terrestre
e é nele que se fundem os metais
e o trigo se levanta.
Amar-te, no entanto,
deixou-me na boca
um gosto amargo,
um amargo sabor de remorso.
De noite, aqui em Santiago,
somente as povoações
de Nueva Légua
se desmoronaram,
as vivendas
cogumelos,
amontoados
fragmentos de ignomínia.
Ao peso da tua cólera
desmantelaram-se,
as crianças;
choraram na lama,
as camas encharcadas
dias e dias,
as cadeiras quebradas,
as mulheres,
o lume, as cozinhas,
enquanto tu,
negra chuva,
inimiga
caias desalmadamente
sobre a nossa miséria.
Eu creio
que um dia,
que marcaremos no calendário,
terão abrigo seguro,
sólido tecto,
os homens no seu sono,
todos
os adormecidos.
E quando de noite
a chuva
regressar
da minha infância
cantará nos ouvidos
doutras crianças
e alegre
será o canto
da chuva no mundo,
trabalhadora,
proletária,
ocupadíssima,
fertilizando montes
e planícies,
dando força
aos rios,
engalanando
o suave arroio
perdido na montanha,
trabalhando
no gelo
das nevadas,
correndo sobre o lombo
do gado,
engrandecendo o germe
primaveril do trigo,
lavando as amêndoas
ocultas,
trabalhando
denodadamente
e com delicadeza fugidia,
com mãos e com fios
na preparação da terra.
Chuva
passada,
ó triste
chuva
de Loncoche e Temuco,
canta,
canta,
canta sobre os telhados
e as folhas,
canta no vento frio,
canta em meu coração, na minha confiança,
no meu telhado, em minhas veias,
na minha vida,
eu não te receio,
resvala
para a terra
cantando com o teu canto
e com o meu
porque os dois temos
trabalhado nas sementes
e partilhamos
o dever cantando.