8 de dez. de 2017

Ao defunto pobre, Pablo Neruda



Enterraremos hoje o nosso pobre:
o nosso pobre pobre.

Viveu sempre tão mal
que é a primeira vez 
que habita este habitante.

Porque não teve casa, nem terrenos,
nem estudos, nem lençóis,
nem carne assada,
assim dum lado para o outro, pelos caminhos,
foi morrendo por não ter vida,
foi morrendo pouco a pouco
porque outra vida não teve.

Por sorte, e que estranho é, desde bispo
ao juiz todos concordaram
que dele era o céu
e agora morto, bem morto o nosso pobre,
ai, o nosso pobre pobre
não saberá o que fazer com tanto céu.
Poderá ará-lo, semeá-lo, colhê-lo?

Isso ele o fez sempre, duramente
lutou com os torrões,
e agora é-lhe suave o céu para lavrar,
e logo entre os frutos celestiais
o seu terá, por fim, pois na mesa
das alturas tudo está ordenado
para que coma do céu à tripa-forra
o nosso pobre que leva, por fortuna,
sessenta anos de fome cá em baixo,
e para saciar, por fim, como é devido, 
sem que a vida mais pontapés lhe dê,
sem que o prendam só porque come,
debaixo da terra, no seu ataúde
já não se mexe, já não se defende,
nem lutará pelo seu salário.
Nunca esperou tanta justiça este homem,
abarrotaram-no de repente e ele agradeceu:
ficou calado de tanta alegria.

Ai, o que pesa agora o pobre pobre!
Era robusto, e de olhos negros
e agora sabemos, pelo que pesa,
ai, quantas coisas lhe faltaram sempre,
pois se esta força não parava nunca,
cavando baldios, removendo pedras, 
ceifando trigo, amolecendo argila, 
moendo enxofre, carregando lenha,
se este homem tão pesado não tinha 
sapatos, ó dor, se este homem cheio
de tendões e músculos não teve
nunca razão e todos o maltrataram,
todos o arruinaram, e mesmo assim
deu conta do seu trabalho, agora levando-o
aos ombros no seu ataúde fechado,
agora sabemos quantas coisas lhe faltaram
e que na terra não o defendemos.

Agora sentimos que carregamos
com aquilo que não lhe demos, mas já é tarde:
pesa-nos e não aguentamos com o seu peso.

Quantas pessoas pesa o nosso morto?

Pesa como este mundo, e continuamos 
com este morto às costas. É evidente 
que o céu é uma grande padaria.

6 de dez. de 2017

Passado, Pablo Neruda


Temos de deitar abaixo o passado
e tal como se constrói
andar por andar, janela por janela,
e o edifício sobe
assim, vamos descendo
telhas quebradas primeiro,
depois orgulhosas portas, 
até que do passado 
começa a sair pó
como se batesse
contra o chão,
começa a sair fumo
como se houvesse fogo,
e cada novo dia
brilha 
como um prato
vazio:
não há nada, não houve nada;
é preciso enche-lo com novas nutrições
espaçosas,
então, para o fundo
o dia de ontem cai
à água do passado
como num poço,
à cisterna
daquilo que já não tem voz nem fogo.
É difícil 
habituar os ossos
a perderem-se,
os olhos
a cerrarem-se
mas 
fazê-mo-lo 
sem o saber:
tudo era vivo,
vivo, vivo, vivo
como um peixe vermelho
mas o tempo
com a noite e um pano
foi apagando
o peixe e seu tremor:
na água na água na água
vai caindo o passado
ainda que se agarre 
a espinhos
e raízes:
partiu partiu e de nada valem
as recordações:
já a pálpebra sombria
cobriu a luz do olho
e aquilo que vivia 
já não vive
e o que fomos já não somos.
E a palavra ainda que as letras tenham
iguais transparências e vogais
agora é outra e outra é a boca:
a mesma boca é outra boca agora:
mudaram os lábios, a pele, a circulação,
outro ser ocupou o nosso esqueleto:
aquele que vivia em nós já não está:
partiu, mas se chamarem, responderemos
"Aqui estou" e sabe-se que não estamos,
pois aquele que estava, esteve mas perdeu-se:
perdeu-se no passado e já não volta.