...Os quatro valetes ergueram o Curinga e o puseram sobre uma mesa. E assim como foi colocado — deitado de costas, as mãos cruzadas atrás da cabeça e as pernas também cruzadas — ele fez um discurso aos anões que se amontoaram ao seu redor.
— Fui o último a chegar a este povoado — começou.
— E todos sabem que eu era diferente de todos vocês. Por isso, a maior parte do tempo eu passava sozinho.
Alguma coisa fez com que os anões prestassem atenção nas suas palavras sem dar um pio. Talvez porque, apesar de tudo, eles sempre tivessem vivido intrigados com a questão de saber por que o Curinga era diferente de todos.
— Minha casa é em lugar nenhum — prosseguiu ele.
— Não sou de copas, nem de ouros, nem de paus, nem de espadas. Também não sou rei ou valete, nem oito, nem ás. Aqui estou eu, um simples curinga. E tive de descobrir sozinho o que é ser um curinga. Toda vez que mexo a cabeça, meus guizos tilintam e me lembram de que não tenho família, de que sou sozinho. Não tenho um número nem um ofício. Não domino a arte de soprar vidro dos anões de ouros, nem a arte da panificação dos anões de copas; a mim me faltam as mãos habilidosas para lidar com a terra, como as dos anões de paus, e também a força muscular dos anões de espadas. Assim, tudo o que sempre fiz foi andar por aí observando tudo o que os outros faziam. Em contrapartida, pude ver um monte de coisas para as quais todos os outros sempre foram cegos.
Enquanto falava, o Curinga mexia o pezinho da perna cruzada e seus guizos tilintavam bem baixinho a cada movimento.
— Toda manhã vocês se levantavam e saíam para o trabalho. Na verdade, porém, vocês nunca estiveram de fato acordados. Pode ser que vocês tenham visto o sol, a lua e as estrelas no céu, e também tudo o que existe e se move sobre a terra... mas vocês nunca viram todas essas coisas como elas realmente são. No caso do curinga é diferente, pois ele veio ao mundo com o defeito de ver coisas demais e de ver todas elas em profundidade!
— Então desembucha de uma vez, seu idiota! — interrompeu a Dama de Ouros. — Se você viu alguma coisa que nós não vimos, vá dizendo logo o que é!
— Eu vi a mim mesmo! — exclamou o Curinga. — eu vi a mim mesmo errando por um imenso jardim cheio de arbustos e árvores.
— Você consegue ver a si mesmo do alto? — deixou escapar Dois de Copas. — Será que os seus olhos têm asas como os pássaros?
— No fundo eles têm, sim. Pois não basta ficar se olhando o tempo todo num pequeno espelho, como as quatro damas aqui do povoado gostam tanto de fazer. Elas estão tão preocupadas com sua aparência que não se dão conta de que vivem.
— Jamais ouvi tamanho atrevimento — comentou a Dama de Ouros, indignada. — Por quanto tempo esse louco vai poder continuar falando essas asneiras?
— A questão é que eu não apenas vejo todas essas coisas — prosseguiu o Curinga. — Eu também as sinto. Sinto que sou... bem, que sou uma criatura viva... uma criatura muito estranha, com pele, cabelos e tudo ... uma marionete viva... robusto como um boneco de borracha. “Mas de onde veio este homem de borracha?”, eu me pergunto.
— Vamos deixar que ele continue falando essas coisas? — quis saber o Rei de Espadas.
O Rei de Copas fez que sim com a cabeça.
— Estamos vivos! — exclamou o Curinga, e estendeu com tanta força os braços que os guizos de sua roupa tilintaram estridentes. — Vivemos uma aventura maravilhosa aos olhos de um céu maravilhoso! Coisa estranha, misteriosa... pode acreditar! Vira e mexe dou um beliscão no meu braço para ver se tudo isso é verdade...
— E dói? — perguntou Três de Ouros.
— Agora, cada vez que ouço um dos meus guizos, sinto que estou vivo. E eles tilintam, como vocês todos sabem, ao menor dos meus movimentos.
Ergueu um braço e agitou-o com tanta força que os anões da fileira da frente recuaram, assustados.
O Rei de Ouros pigarreou e perguntou:
— Você também descobriu de onde vem o homem de borracha?
— Está aí uma coisa que vocês mesmos adivinharam — respondeu o Curinga. — Cada um solucionou uma pequena parte do enigma. Isso porque quando se tem pouca massa encefálica é preciso juntar várias cabeças para se conseguir pensar um pensamento, por mais simples que ele seja. E essa cabeça fraca é resultado apenas do exagero de bebida púrpura. Eu vos digo que eu, o Curinga, sou mesmo uma marionete muito esquisita; mas todos vocês são tão esquisitos quanto eu. Só que vocês não conseguem ver isso por vocês mesmos. E também não dá para sentir isso quando se toma bebida púrpura demais, pois a gente fica completamente tomado pelo gosto de mel, lavanda, amoras-do-mato, nabos anelados e gramíneas.
Quando isso acontece, a gente tem a impressão de formar uma coisa só com o jardim à nossa volta, e o resultado é que não conseguimos mais sentir que vivemos nossa própria vida no interior desse jardim. Pois quem tem o mundo inteiro na cabeça acaba se esquecendo de que possui uma boca. E quem sente todos os gostos do mundo nos braços e nas pernas se esquece de que é uma marionete cheia de mistérios. Eu, este Curinga que vos fala, tentei por várias e várias vezes contar-lhes a verdade, mas vocês não tinham ouvidos para ouvir. Ou melhor: ouvidos vocês tinham, mas os canais de audição estavam entupidos de maçãs e peras, morangos e bananas. Está certo que vocês tinham olhos para ver, mas de que adianta ter olhos se eles só vêem copos, garrafas e garrafões? Ouçam bem o que vos digo, pois só o Curinga conhece a verdade.
Admirados, os anões trocavam olhares cheios de indagações.
— De onde vem o homem de borracha? — perguntou novamente o Rei de Copas.
— Somos frutos da imaginação de Frode — disse o Curinga abrindo os braços. — Um dia, porém, as criaturas da imaginação de Frode se tornaram tão vivas que conseguiram escapar de sua cabeça. “Mas isso é impossível,!”, eu me dizia. “Tão impossível quanto o sol e a lua. Só que o sol e a lua também são verdadeiros."
Os anões no salão voltaram seus olhos cheios de dúvidas e perguntas para Frode e o velho homem segurou no meu pulso.
— Mas isso não é tudo — continuou o Curinga. “Quem é Frode, Curinga?”, eu me perguntava. “Ele também é uma marionete cheia de mistérios”, eu me respondia. Uma marionete cheia de vida aos olhos de um set misterioso. Um homem solitário nesta ilha mas que na verdade pertence a um outro jogo. Uma carta de um outro jogo. E não se sabe a quantidade de cartas que tem esse jogo. E nem quem distribui essas cartas. O Curinga só sabe, de uma coisa: Frode também é uma marionete, que um belo dia descobriu que tinha vida própria. “De que cabeça essa marionete escapou?”, pergunto. E assim vou perguntando, perguntando... até um dia encontrar uma resposta.
Foi como se os anões acordassem de um longo sono. Dois e Três de Copas foram buscar vassouras e começaram a varrer o chão do salão. Os quatro reis formaram um pequeno círculo, colocando os braços sobre os ombros uns dos outros. E ficaram assim, confabulando sobre alguma coisa, até que o Rei de Copas virou-se para o Curinga e disse:
— É com profundo pesar que os quatro reis do povoado chegaram à conclusão de que o pequeno Curinga está dizendo a verdade.
— Pesar por quê? O que há de tão triste no fato de eu dizer a verdade? — perguntou o Curinga, que continuava em cima da mesa.
Desta vez foi o Rei de Ouros quem tomou a palavra:
— De fato é muito triste saber que o Curinga nos disse a verdade — disse ele. — Pois isso significa que o Mestre tem de morrer.
— E por que o Mestre tem de morrer? — perguntou o Curinga. — Sempre é preciso cantar a regra antes de cortar o monte de cartas.
O Rei de Ouros respondeu-lhe:
— Enquanto Frode circular pelo povoado, sua presença vai nos lembrar de que somos criaturas artificiais. É por isso que ele deve morrer pela espada dos valetes.
Nesse momento o Curinga desceu da mesa. Olhou primeiro para Frode e depois voltou-se para os reis:
— Não é bom que criador e criatura convivam tão próximos um do outro, pois é grande o perigo de um acabar enervando o outro. Por outro lado, também não podemos censurar Frode por ter uma imaginação tão viva. Não há o que ele possa fazer se as criaturas que criou na sua rica imaginação acabarem por se declarar independentes.
O Rei de Paus ajeitou a coroa na cabeça e disse:
— Cada qual pode imaginar o que quiser. Mas ele tem dever de advertir as criaturas de sua imaginação para o fato de elas serem criaturas da imaginação. Caso não o faça, ele as estará enganando... e, nesse caso, as criaturas que ele imaginou têm o direito de matá-lo.
Lá fora, o sol desapareceu por detrás de uma grande nuvem e todo o salão mergulhou subitamente numa penumbra.
— Vocês ouviram o que dissemos, valetes? — perguntou o Rei de Espadas. Ordeno-vos, portanto, que decepeis a cabeça do Mestre!
Ao ouvir isso, dei um salto da minha cadeira. No mesmo instante, porém, o Valete de Espadas apontou para Frode e para mim e disse:
— Não é necessário, Majestade, o mestre Frode já está morto!
Virei-me para o lado. Frode havia deslizado de sua poltrona e jazia no chão, sem vida. Não era a primeira vez que eu via um morto. E eu sabia que nunca mais veria aquele brilho nos olhos de Frode.
Senti o vazio e a solidão mais profundos que alguém é capaz de sentir. De repente, lá estava eu: completamente sozinho na ilha misteriosa. À minha volta agitava-se um jogo de cartas vivas... mas nenhum, nenhum dos anões daquelas cartas era uma pessoa como eu.
Os anões formavam agora um círculo bem apertado ao redor de Frode. Seus semblantes pareciam vazios... mais vazios ainda do que no dia anterior, quando eu chegara ao povoado. Percebi que Ás de Copas sussurrou alguma coisa ao ouvido do Rei de Copas. Depois, correu em direcção à porta e desapareceu.
— Estamos agora sobre nossas próprias pernas — disse finalmente o Curinga. — Pois Frode está morto e foram suas próprias criaturas que o mataram...
Link para leitura / download de "O Dia do Curinga" de Jostein Gaarder
http://www.esnips.com/doc/c988b88c-ae86-4a19-8366-c86bd585cd2a/Jostein-Gaarder---O-dia-do-curinga